Redução do sobreconsumo de alimentos de origem animal: um tabu persistente

Por Fernando Mano

A “carnificação” da dieta humana

A crescente voracidade dos humanos por alimentos de origem animal (sobretudo carne, lacticínios e ovos), converteu um punhado de espécies com interesse pecuário, nas mais preponderantes do Planeta. Se um extraterrestre chegasse hoje à Terra, provavelmente sentir-se-ia motivado a chamar-lhe “Planeta das Vacas”, coisa que não seria absurda, considerando que já em 2010 a massa total de bovinos domésticos excedia 130 milhões de toneladas, enquanto o total da massa de seres humanos não ultrapassava à data 100 milhões de toneladas. Ou talvez o nosso imaginário visitante preferisse chamar-nos o “Planeta dos Frangos”, atendendo a que a população total de frangos é 3 vezes superior à população total de seres humanos, cifras que testemunham o enorme incremento do sector pecuário ao longo das últimas décadas.

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Produção intensiva de frangos nos EUA. Fonte: Wikipedia 

Há um século atrás, a proteína animal representava, em alguns países, uma considerável fatia da dieta das suas populações, embora distribuída muito desigualmente pelas diferentes classes sociais. O Reino Unido é um exemplo de grande consumo de carne já em finais do século XIX e princípios do século XX, fenómeno que acompanhou a crescente urbanização e o aumento dos rendimentos das famílias, e que viria a revelar posterior tendência para a estabilização. É na segunda metade do século XX que se inicia um enorme aumento do consumo dos produtos de origem animal, primeiro na maioria dos países “desenvolvidos”, mas que rapidamente alastrou às classes mais abastadas dos países “em desenvolvimento”, tendo a produção global de carne triplicado ao longo das últimas quatro décadas.

O aumento do consumo de produtos de origem animal, e mais concretamente de carne, deve-se hoje muito mais ao aumento do apetite carnívoro das classes médias das economias “emergentes”, do que ao aumento da população global do Planeta. O consumo global per capita de carne, que em 1962 era 23Kg, atingiu os 46Kg em 2009 e não parou de crescer desde então. A desigualdade é grande entre países. Tradicionalmente os maiores consumos per capita pertenciam aos Estados Unidos, à Austrália e à Nova Zelândia onde se atingem consumos superiores a 130Kg/ano, ao mesmo tempo que em vários países de África e do sul da Ásia, o consumo per capita ainda não foi além de 10Kg/ano.  Os países europeus também apresentam elevados consumos per capita, mas com tendência para a estabilização desde a década de 90 do século passado, e a maioria deles – salvo raras exceções – exibe consumos aquém dos 100Kg/ano.

Nas últimas décadas do século XX, alguns países da Europa meridional acordaram de forma serôdia, mas não menos voraz, para o consumo de produtos de origem animal. Portugal é um desses casos que em poucas décadas se tornou um dos maiores consumidores per capita de carne do mundo, com um consumo de 111Kg em 2015, ou seja, bastante mais do triplo da quantidade recomendada pelo World Cancer Research Fund, que em 2011 apelou a que a ingestão de carne não exceda as 500g por semana, o que significa 27Kg/ano. A Organização Mundial de Saúde também recomenda que a ingestão de carnes vermelhas (bovino, suíno, ovino e caprino) e processadas, não ultrapasse no conjunto as 500g por semana. Conclui-se que a Organização Mundial de Saúde preferiria ver a generalidade das pessoas comer carne duas vezes por semana, e não diariamente como acontece frequentemente nos países mais desenvolvidos, e crescentemente naqueles que ainda o não são.

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Comercialização de carne fresca num supermercado nos EUA. Fonte: Wikipedia

Uma dieta insustentável

O aumento da produção de produtos de origem animal, principalmente carne, para satisfazer uma procura que cresce de forma aparentemente insaciável, significa uma muito má utilização dos recursos naturais, num contexto de crescente escassez de muitos deles. A nível global, mais de 70% de toda a área considerada “agrícola” em sentido lato, ou seja, cerca de 30% do total de área emersa do Planeta, está a ser usada não para produzir alimento para seres humanos, mas sim para produzir alimentos para animais. Às áreas de pastagem somam-se as vastíssimas áreas de culturas arvenses destinadas à produção de rações animais (principalmente soja), e para além disso 44% da colheita global de cereais estás a ser destinada à alimentação animal.

Na União Europeia, dois terços da área agricultável é usada para produzir alimentos para animais, e a pecuária europeia necessita hoje de 20 milhões de hectares fora da Europa para produzir os componentes proteicos das rações, principalmente soja. Uma redução de 50% do consumo de alimentos de origem animal na União Europeia – que mesmo assim continuaria a consumir mais do que a Organização Mundial de Saúde recomenda – representaria a libertação de 45 milhões de hectares de terra arável, ou seja, um terço da área arável da Europa.

O derrube de floresta para a instalação de monoculturas destinadas ao fabrico de rações, está a causar graves disfunções sociais concentrando ainda mais a terra na mão de um número reduzido de corporações do agrobusiness, e expulsando a pequena agricultura familiar, privando-se as populações locais das suas tradicionais formas de subsistência. Isto é bem evidente na América Latina, nomeadamente no Brasil e na Argentina.

Considera-se hoje que a atividade pecuária é responsável por 29% da poluição global dos recursos de água doce, devido à libertação de dejetos animais, antibióticos, hormonas, químicos usados na produção de curtumes, fertilizantes químicos e pesticidas utilizados na produção de cereais e proteaginosas para rações, e ainda sedimentos provenientes da erosão de pastagens. A pecuária é ainda responsável pela emissão de 64% do total de amónia com origem antropogénica, o que constitui grande contributo para a formação de chuvas ácidas e para a acidificação dos ecossistemas.

A destruição de floresta biodiversa para a instalação de monoculturas – principalmente soja e milho – destinadas à produção de rações, é a maior causa de aceleração da perda de biodiversidade que vivemos nos nossos dias.

Num momento em que a Humanidade enfrenta com intensidade crescente a ameaça das alterações climáticas, a pecuária é responsável por 18% das emissões globais de gases com efeito de estufa, ou seja, mais do que todo o tráfico automóvel. E ao contrário do que frequentemente se pensa, a emissão de metano produzido pela fermentação entérica dos ruminantes, não representa mais do que 39% das emissões totais provenientes da atividade pecuária. A principal causa de emissão de gases com efeito de estufa pela pecuária, é o derrube de florestas e posterior instalação de monoculturas destinadas à produção de rações, incluindo intensivo uso de fertilizantes químicos e de pesticidas. A produção de rações na sua globalidade representa 45% do total de emissões provocadas pela pecuária. O restante das emissões ocorrem no transporte e distribuição de animais e produtos animais, e ainda por efeito da decomposição de dejetos animais.

É cada vez mais consensual entre a comunidade científica que os potenciais avanços tecnológicos, por mais surpreendentes que venham a ser, não serão suficientes para compensar o aumento de danos ambientais provocados pela atividade pecuária que não pára de crescer. Nem sequer é credível que se consiga conter o aquecimento global abaixo dos 2ºC se o comportamento da Humanidade não se modificar no que toca ao consumo de alimentos de origem animal, especialmente carne. A procura de soluções técnicas tem-se centrado essencialmente no aumento da produtividade das atividades pecuárias e na mitigação das emissões, admitindo as previsões mais otimistas que por esta via se possam alcançar reduções de 32%, o que não é suficiente considerando o aumento expectável da atividade pecuária.

A única solução reside na mudança de comportamento dos consumidores, com alteração dos seus hábitos alimentares. Uma mudança da tendência da dieta no sentido da ingestão diária de 90g de carne, quantidade suficiente para satisfazer as necessidades nutricionais em proteína animal (em Portugal, por exemplo, consomem-se hoje per capita mais do dobro) poderia evitar a emissão de 2.15 Gt CO2eq ano até 2030. Isto seria muito mais do que todas as reduções possíveis do lado da oferta, e seria um contributo absolutamente crucial para se conter o aumento do aquecimento global no limite de 2ºC

Acresce que na maioria dos países desenvolvidos, e crescentemente entre as classes médias e urbanas dos países em desenvolvimento, o consumo de carne e de lacticínios atingiu um nível que atenta contra a saúde, e muitos são os estudos epidemiológicos que aconselham redução do consumo. Somos de facto omnívoros, mas com menor vocação carnívora do que muitos imaginam.

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Consumo de carne per capita nos países industrializados, média 2010-2012. Fonte: Atlas da Carne 2014, Heinrich Boell Foundation, Friends of the Earth Europe

Evitando a abordagem do problema

Perante a insustentável tendência global de “carnificação” da dieta humana que vem sendo trilhada desde os anos 50 do século passado, seria expectável que os governos, as organizações internacionais e as ONG’s preocupadas com estes problemas manifestassem clara determinação em os enfrentar. Ora, a realidade é bem diferente e mostra-nos que todas estas instituições revelam alguma relutância, que algumas vezes chega a parecer temor, em abordar a temática do sobreconsumo de alimentos de origem animal.

Poucos são os países que explicitam nos seus planos de redução de emissões, ações concretas relacionadas com a pecuária. Dos 40 países desenvolvidos constantes no Anexo I do Protocolo de Quioto, só a Bulgária e a França definem quantidades de redução de emissões provocadas pela pecuária. Situação idêntica se verifica nos planos dos países em desenvolvimento, onde as referências à pecuária são genéricas, e apenas um – o Brasil – quantifica reduções a atingir no que toca a emissões provocadas pela pecuária.

Hoje somos tentados a concluir que as negociações no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, subestimaram a pecuária. Não seria despropositado referir que a agricultura no seu sentido mais abrangente (e portanto, incluindo a pecuária) apenas recebe 4% do financiamento destinado à mitigação, fornecido por bancos multilaterais de desenvolvimento. Tudo isto chega a parecer absurdo quando nos lembramos de que a escassez de políticas e de financiamentos para enfrentar as emissões provenientes da pecuária, permanecem em forte contraste com a abundância de apoios governamentais disponibilizados aos produtores de carne e de lacticínios. Nos países da OCDE atribuem-se anualmente 53 mil milhões de dólares ao sector pecuário. É claro que em vez de enfrentarem o problema do sobreconsumo, os governos preferem apoiar o setor pecuário.

Lang e Caraher, já em 2010, consideravam que a urgente reversão da tendência do aumento do consumo de carne, era vista como “politicamente explosiva”. Lang denuncia a falta de coragem dos políticos, todavia não deixa de sublinhar que a falta de diálogo entre cientistas e políticos muito tem contribuído para que o sobreconsumo de alimentos de origem animal seja sistematicamente classificado de “muito difícil de resolver”, e colocado na caixa dos “deixar para o meu sucessor resolver”.

Na União Europeia, assiste-se a uma significativa ausência de atenção política ao sobreconsumo de alimentos de origem animal. Só muito pontualmente a Comissão Europeia, ou algum membro do Parlamento Europeu de forma isolada, trazem o assunto à luz do dia, mas sempre de forma intermitente e descontinuada, como se de um tabu se tratasse. De facto, a problemática do atual nível de consumo de alimentos de origem animal, está fora das políticas europeias. O mesmo  se passa com os governos que temem abordar a relação entre dieta e sustentabilidade.

São várias as razões que ajudam a explicar a ausência de políticas para redução do sobreconsumo de produtos de origem animal. Desde logo, a esmagadora maioria dos consumidores não compreende a pegada ecológica da pecuária, e muito menos o seu contributo para o aquecimento global. Nesta matéria há um longo trabalho de informação a concretizar. De um modo geral, prodigalizam as recomendações para que se reduza o consumo de energia, mas têm permanecido esquecidas medidas que aconselhem a redução do consumo de alimentos de origem animal. Os próprios grupos ambientalistas têm sido minimalistas no que toca a campanhas desenvolvidas para aumentar a consciência coletiva em relação à pegada ecológica da carne e dos lacticínios. Estas campanhas são realmente escassas e têm sido relativamente silenciadas.

À ignorância natural da maioria dos consumidores, há que somar uma ignorância propositada, a que os psicólogos chamam “dissonância cognitiva”, e que consiste num intencional alheamento das desvantagens do sobreconsumo, considerando que este dá prazer, é tradicional, todos consomem muito, é um símbolo de identificação social, etc.. Neste capítulo, há ainda a considerar o esforço desenvolvido pela indústria pecuária e pela distribuição no sentido de afastar o consumidor da proveniência do produto. Quando o consumidor retira um pedaço de carne em condições de aparente assepsia numa atraente e muito iluminada prateleira de um sofisticado supermercado, dificilmente consegue ter consciência da realidade viva donde aquele pedaço de carne proveio.

Não podemos ainda esquecer os significados e simbologias que acompanham a carne em muitas sociedades, e que fazem dela muito mais do que um alimento. Esse é um dos “motores” da voracidade por carne das emergentes classes médias de países que tradicionalmente comiam muito pouca carne.

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Consumo de carne per capita nas economias emergentes, média 2010-2012. Fonte: Atlas da Carne 2014, Heinrich Boell Foundation, Friends of the Earth Europe

No caso concreto dos governos, é notório que temem não ser tolerados pelos eleitores, se estes considerarem uma intrusão abusiva o facto dos poderes públicos procurem condicionar as suas escolhas alimentares. Ou seja, os governos temem ser penalizados nas urnas por tentarem condicionar a liberdade de escolha dos consumidores.

Apesar das razões atrás referidas, e de outras que numa análise mais refinada se poderiam referir, há uma que é especialmente determinante para que muitas instituições, a começar pelos governos, olhem para o sobreconsumo de produtos de origem animal como um tabu: a dimensão económica do setor pecuário. Só nos Estados Unidos, o animal agrobusiness ascende a 125  milhares de milhões de dólares, e na Europa esse valor é ainda superior.

Há um conjunto de grandes empresas envolvidas no negócio da pecuária que são extremamente poderosas. Vão desde fabricantes de fertilizantes químicos, farmacêuticas, e produtoras de sementes, até fabricantes de rações, de tratores, de equipamentos de rega, cadeias de supermercados, empresas de transportes, etc.. E além de todos os referidos anteriormente, temos os agricultores (neste caso criadores), grupo especialmente protegido nos países mais desenvolvidos. Na União Europeia mais de 12% do rendimento bruto dos criadores de animais, são garantidos por subsídios públicos.

O mais simples, mais eficaz e mais eficiente instrumento para contrariar o aquecimento global, que é a redução do sobreconsumo de alimentos de origem animal, continua assim a escapar-se entre os nossos dedos.


Fernando Mano é doutorando no Programa de Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável

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