Na terra dos emolimoli

Autora: Carla Gomes

Reflexões sobre uma experiência de trabalho de campo em Moçambique

A chuva provocara o caos. Inundara o centro do país, derrubara postes de alta tensão e pontes, cortando estradas nacionais. Todo o Norte de Moçambique mergulhou num “apagão” que se prolongaria por um mês. Alerta vermelho, decretou o Governo. Foi neste cenário, em Fevereiro de 2015, que cheguei a um dos lugares mais bonitos que já conheci, na caixa de uma camioneta de caixa aberta, sentada em equilíbrio precário sobre uma saca de peixe salgado. Depois de descer do machimbombo com todos os passageiros, percorrer a pé um troço da estrada Malema-Cuamba, feito rio de lama, e torrar durante horas na beira da picada, à espera do “carro” que não veio.

Nessa noite, depois de mais uma profusa chuvada, os emolimoli celebravam como nunca. E esse cheiro da terra era o mesmo que sentia na minha ilha, quando estia. E esses insetos luzentes eram afinal os mesmos que habitam a serra à beira da minha casa. A todo um mundo de distância. Esta aldeia já nem queria que de lá saíssemos, eu e a outra investigadora portuguesa que comigo partilhou a louca viagem. “Mais vale ficarem e fazerem machamba aqui”, gracejava um rapaz ao ver-nos regressar, tendo desconseguido voltar à vila a bordo de mais um “chapa“.

Esta foi, até hoje, a minha experiência de campo mais ambiciosa. Depois de uma primeira digressão pelo Norte do país, em Junho de 2014, regressei a Moçambique com o propósito de estudar as relações entre as empresas de agronegócio e as comunidades rurais para a tese de doutoramento. Comecei por Maputo, onde rapidamente se começou a formar uma boa rede de contactos – a ferramenta mais preciosa – e nos primeiros dias de 2015 rumei a Norte. Acabei por me fixar no interior da província de Nampula, numa pequena vila. Daí deslocava-me para a aldeia próxima para as entrevistas e as conversas com a população. À medida que fui avançando no trabalho, o nível de exigência foi aumentando. Na segunda zona de estudo, já na província de Cabo Delgado, acabei por ficar alojada na aldeia, em casa de uma família.

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Chegava do “campo”, de mota, de bicicleta ou a pé, sempre de rastos. Por vezes enterrava-me até aos tornozelos na lama impiedosa dos caminhos. No “campo” não há lugar para vaidades. A prioridade não é manter uma rotina de cosmética. Quando muito, aplicar com diligência o repelente, por menos que apeteça, e remendar a rede mosquiteira, por muito sono que se tenha. Todo o corpo se transfigura, derretido pela humidade e pelo calor, a pele tisnada, as roupas maltratadas pelas lavagens desajeitadas. Há que deixá-lo ir.

Nunca sentira realmente a pressão de pertencer a uma minoria, muito menos esperava que a minha presença provocasse reações tão intensas como apontar, rir ou chorar. O que nas zonas rurais do interior é comum, sobretudo por parte das crianças. Foi um desafio conviver quotidianamente com essa realidade. Mas também uma aprendizagem preciosa. O impacto da nossa presença, aspeto físico, idade, origem, aqui ou em qualquer parte do mundo, tem naturalmente de ser tido em conta na própria investigação. Perspetivas diferentes e nem sempre compatíveis emergiam à medida que se iam acumulando conversas. “Depois vai fazer a matemática, não vai?”, interrogava um dos líderes locais, sentado no terreiro da casa numa tarde de domingo. Não o poderia traduzir em melhores palavras.

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Se na primeira aldeia as crianças já vinham por vezes tocar-me ou faziam uma festa quando viam passar a mukunia, na aldeia que visitei em Cabo Delgado a minha chegada teve ainda maior impacto. Vieram as crianças da vizinhança para me ver e por ali ficaram o resto do dia, seguindo com os olhos arregalados cada pequeno movimento que eu fizesse. Um desafio para quem é tímido mesmo nas interações sociais mais comezinhas. Passámos a tarde sentados no terreiro a descascar amendoins, ingrediente essencial da matapa. Muitos deles não falavam português. Mas nem é preciso ir longe para fintar aparentes barreiras linguísticas. Quando dei por mim, tínhamos uma equipa de futebol a reunir-se entusiasticamente nos finais de tarde. É para esses miúdos que voa agora o meu pensamento sempre que chego a casa e vejo as crianças da vizinhança a jogar “à bola” no largo.

Mukunia, além de “branco europeu”, significa literalmente “aquele que tem mais dinheiro do que nós”, explicou-me um dos meus intérpretes de Macua, a língua mais falada no Norte de Moçambique. E há uma razão para isso. No entanto, os investigadores “juniores” vivem entre mundos. Não sendo financeira nem academicamente viável ficarem alojados em hotéis e viajarem em jipes com ar condicionado, são umas personagens exóticas que percorrem as zonas rurais, não sendo equiparáveis sequer ao pessoal das ONG. Para os locais, era motivo de admiração que eu participasse nas tarefas, dormisse na aldeia, tomasse banho de caneco ou viajasse na caixa dos “chapas”. “Carlaaa!!! Vem pilar!!!”, chamava-me entusiasmada uma das mulheres da aldeia.

Certo é que, tendo chegado a Moçambique sem conhecer lá uma única pessoa, tive sempre o aconchego da amizade, senti-me sempre protegida, estivesse onde estivesse. E não falo apenas dos moçambicanos, que me acolheram tão bem. Naquele país encontrei o mundo todo. Com as suas religiões, cores e línguas. Passei a compreender muito melhor o que significa conviver com a adversidade e a diversidade. De regresso a Inglaterra, e depois a Portugal, reconheci a cor, agora mais intensa, daquilo a que alguém chamou fieldwork blues. O processo de (re)adaptação arrastou-se por largos meses.

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Sinto, sem dúvida, saudades dos pirilampos. E desses lugares de nomes doces que se enrolam indolentes na boca quando os pronunciamos. Das montanhas de rocha azul que adornam cada linha do horizonte. Daquela pequena vila entre rios que se tornou a minha casa, e das pessoas que me acolheram como família. Sinto ainda os chinelos a escorregar na lama, ao atravessar a “avenida” para ir à mercearia buscar o pão “de água”. E repito sempre com gosto, em voz alta, as primeiras palavras de Macua que arrisquei ao entrar na loja. “Ehali?” – “Ehali kehali! Mpaka Melo!”. Para mim, Moçambique será sempre “até um dia destes” – “mpaka nihiko nikina”!

(Todas as fotografias são da autora)

Carla Gomes é doutoranda no ICS-ULisboa e na University of East Anglia.

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