(5) Poderes e futuros
Autor: Paulo Granjo
Em finais de 2015, vi o presidente Nyusi declarar na televisão que iriam terminar imediatamente os assaltos policiais a sedes da RENAMO, em busca de armas. No dia seguinte, vi um mero comandante provincial da polícia afirmar, ao mesmo canal moçambicano, que na “sua” província as ações continuariam até ao total desarmamento.
Esta contradição quase inacreditável, tendo em conta quer as competências constitucionais do Presidente da República, quer a praxis do seu exercício, constitui um eloquente signo de uma situação que é consensual entre os mais diversos observadores: ao contrário das anteriores transições presidenciais, ao atual Presidente tem sido sonegado o pleno exercício do seu poder, em particular no que diz respeito à obediência das forças militarizadas e à resolução da crise político-militar.
Ao que tudo indica, a recente exoneração do Comandante-Geral da polícia é uma declaração da inaceitabilidade dessa situação e do empenho do Presidente em revertê-la. Mas a fragilização, a partir do próprio aparelho de Estado, das tentativas presidenciais de criar condições para uma solução negociada para a crise demonstra a divisão das figuras mais influentes da FRELIMO, quanto ao caminho a seguir. Por outro lado, quer a identidade dos defensores públicos da via belicista, quer o facto de as desobediências presentes terem que estar respaldadas em obediências passadas, indicam esse confronto como sendo uma continuidade da competição pelo poder estatal e partidário, mesmo depois de Filipe Nyusi ter assegurado nominalmente a liderança de ambos.
Justifica-se perguntar por que razão é que as táticas belicistas, por oposição às negociais, continuam a ser o ponto de clivagem dessa competição pelo poder. É verdade que se trata de um campo em que as limitações do poder nominal, face ao exercício de contrapoderes baseados na influência e em hierarquias que deixaram de ser formais, se tornam facilmente evidentes – e que a evidenciação dessas limitações constitui, em si mesma, um poderoso instrumento de competição política. Mas, tendo em conta o desagrado popular, os riscos envolvidos e a reconhecida flexibilidade tática dos experientes políticos frelimistas (ou mesmo de Dhalakama, que por exemplo guinou do não-reconhecimento dos resultados eleitorais de 2014 para a exigência de governar as províncias onde, nessas eleições, tinha vencido), porquê a insistência na via belicista?
Creio que há mais dois fatores a ter em conta.
Por um lado, o carácter sensível da partilha do poder a que aludi no 3º post desta série não é apenas de natureza económica, mas igualmente um traço perene (e, aliás, partilhado pela RENAMO) da cultura de poder na região, que poderíamos sintetizar sob o princípio de que the winner takes all. Assim sendo, a insistência na via bélica não é apenas um instrumento de tensão intrapartidária, mas também uma posição coerente com o ethos de exercício do poder.
Por outro lado, o belicismo tende a assumir, em contextos muito diversos, uma lógica auto-reprodutora. Uma vez tendo sido posto em ação, a sua credibilidade intimidatória implica que sejam galgados sucessivos patamares e, quanto mais tal acontece, mais difícil se torna para os seus mentores e executores revertê-lo, quer pelos crescentes custos associados a essa decisão, quer pela progressiva dificuldade em conceber alternativas aceitáveis.
Neste quadro, quem me lê estará talvez surpres@ por ter falado tão pouco de um dos lados em contenda – a RENAMO. Isso deve-se ao facto de me parecer evidente que não seria difícil chegar a propostas mutuamente aceitáveis para ambas as partes e para o salvaguardar das respetivas faces, a partir do momento em que ambas reconhecessem a existência de condições para negociarem de forma credível.
No entanto, tais condições e o seu reconhecimento só poderão existir se o atual Presidente da República conseguir alcançar um efetivo controlo do aparelho de Estado e um apoio alargado das elites partidárias para com a opção negocial que declara ser a sua. Se não o conseguir, será pelo contrário expectável a sua eventual transformação numa figura essencialmente decorativa.
Dessa forma, sugiro, a resolução da crise político-militar moçambicana joga-se mais ainda no interior das elites da FRELIMO do que no confronto mantido entre ela e a RENAMO.
(coda) Insustentável é a guerra
Entretanto, o impacto político das manifestações pela paz ocorridas em 2013 – tal como, aliás, a capitalização em votos que o discurso anti-belicista do MDM obteve nas eleições autárquicas desse ano – indicam que, apesar da fragilidade da chamada “sociedade civil” moçambicana, nem ela nem a expressão de sentimentos dos cidadãos serão irrelevantes para o desenvolvimento deste processo.
Mesmo quando politicamente militantes ou justificadamente descontentes com as suas condições de vida, todos os moçambicanos com quem tenho falado desde 2012, das mais diversas condições sociais, estão conscientes de que a guerra é aquilo que não querem de todo. Não apenas pela morte e destruição bélica ou pelos traumas recentes, mas também porque representaria a insustentabilidade do seu tipo de vida e de subsistência presentes, mesmo quando estes são muito modestos, precários e difíceis.
Possam eles fazer-se entender.
Possam os poderosos conseguir ouvi-los.
Porque insustentável, é mesmo a guerra.
Paulo Granjo é Investigador Auxiliar do ICS-ULisboa.