Autora: Ana Delicado
É comum afirmar-se que a participação cívica em Portugal é baixa. E, de facto, olhando para a subida contínua da abstenção eleitoral ou para os resultados dos inquéritos internacionais que demonstram que Portugal tem das taxas mais baixas na Europa de participação em manifestações (7%), assinatura de petições (8%) ou contacto direto com um representante político (6%) (European Social Survey, 2012), esta afirmação parece confirmar-se.
No entanto, o que uma leitura mais atenta da realidade demonstra é que, quando os problemas ambientais (ou de outra natureza) as afetam diretamente, as pessoas mobilizam-se, procuram informação e aliados, exercem pressão para ver os seus interesses e necessidades satisfeitos. Foi disso exemplo o prolongado caso da coincineração de resíduos perigosos e, agora, a mobilização contra a exploração de petróleo e gás natural no Algarve.
Em março de 2015, perante as notícias que o governo português teria assinado contratos de concessão da exploração de hidrocarbonetos em praticamente toda a costa portuguesa, do Porto a Vila Real de Santo António, e de exploração de gás de xisto na região Oeste e na serra algarvia, de Aljezur a Tavira, foi constituído um movimento cívico com o objetivo de “alertar a população para os riscos inerentes à exploração de hidrocarbonetos no Algarve, incentivar um debate público sobre as consequências para a região de uma tomada de decisão desta natureza, exigir um estudo de impacto social, económico e ambiental, e, ainda, pressionar o estado para publicar toda a informação inerente à prospeção, pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural em Portugal” (Plataforma Algarve Livre de Petróleo).
Figura 1. Mapa das concessões de exploração de hidrocarbonetos
Fonte: PAPL
Este movimento reúne um conjunto alargado de diferentes agentes: organizações não-governamentais de ambiente, movimentos de transição, autarcas, surfistas, agricultores, residentes e proprietários de habitações de férias, empresários do setor turístico. Em pouco menos de um ano de existência, o movimento dinamizou várias petições, uma das quais reuniu o número suficiente de assinaturas para ser discutida na Assembleia da República. Criou um website onde disponibiliza a informação sobre os contratos de exploração, tão difícil de encontrar nos organismos oficiais. Organizou manifestações de rua e campanhas nas redes sociais, com base em selfies de apoiantes empunhando cartazes com palavras de ordem: #AlgarveLivreDePetróleo #RasgaOContrato. Promoveu debates públicos em múltiplos locais da região e foi presença assídua nas sessões de esclarecimento organizadas pelos promotores da exploração de hidrocarbonetos. Angariou o apoio público de artistas, cientistas e até de partidos políticos.
Figura 2. Recolha de assinaturas para a petição “Um Algarve livre de pesquisa, prospeção, exploração e produção de petróleo e gás natural” na marcha pelo clima em Tavira, 29 de novembro de 2015Fonte: fotografia de Nuno Alves
O que explica esta mobilização cívica tão forte no Algarve e quase inexistente noutras regiões igualmente em risco? Por um lado, os potenciais impactes ambientais da exploração de hidrocarbonetos afetarão severamente não só áreas naturais sensíveis (a Ria Formosa, os ecossistemas do barrocal e da serra) mas também as atividades económicas da região: turismo, agricultura, pesca, viveirismo e captura de bivalves e marisco, desportos náuticos, sem que estejam previstas quaisquer contrapartidas para as autarquias e as populações locais. Por outro lado, o capital social e cultural de alguns dos residentes, em particular de nacionalidade estrangeira, que mostram particular apego ao local de adoção.
O que este caso releva também é a persistência da tradição administrativa centralista, secretista e pouco democrática de lidar com o público em matéria de risco ambiental. Os contratos foram assinados em segredo pelo governo anterior, sem qualquer discussão pública. Promotores e decisores atribuem as críticas da população a emotividade e ignorância e negam a existência do risco, apesar de bastas evidências do contrário: veja-se o caso da catástrofe ecológica no Golfo do México em resultado de uma fuga numa plataforma petrolífera, da fuga de gás metano de um poço na Califórnia ou da contaminação ambiental causada pelo fracking nos Estados Unidos. Não foram feitos estudos de impacto ambiental porque a legislação é omissa no que respeita à fase de prospeção.
Poucas semanas depois da COP de Paris, em que governos de todo o mundo, incluindo o português, se comprometeram com metas ambiciosas para a redução de gases com efeito de estufa para prevenir os efeitos catastróficos das alterações climáticas, que no fundo exigem que se mantenham no subsolo os recursos fósseis que ainda estão por explorar, estas concessões estão claramente em contraciclo com a política ambiental atual. E, também, em contradição com os objetivos propostos de aumentar o peso das energias renováveis no consumo de energia, num país onde estas asseguram já boa parte das necessidades (em 2014, 27% do total de energia e 52% da eletricidade).
É então a luta contra a exploração de petróleo e gás no Algarve um caso clássico de NIMBY (o acrónimo em inglês para “no meu quintal não”)? É bem mais do que isso. É sobretudo um exemplo de mobilização cívica local inserida em movimentos globais de defesa do quintal de todos.
Ana Delicado é investigadora do ICS ULisboa.