Notas do Fórum da Habitação do Projeto LOGO – The LOcal GOvernance of housing policy – 3ª edição – Territórios de Baixa Densidade na Região Centro

Por: Bruna Lee Azado

No dia 16 de junho de 2025 aconteceu, em Coimbra, a 3ª edição do Fórum da Habitação do projeto LOGO – A Governação Local das Políticas de Habitação. Uma investigação das Estratégias Locais de Habitação (2023–2026).

Depois de duas edições na Área Metropolitana de Lisboa, este fórum deslocou-se para o Centro do país, com o objetivo de conhecer a realidade das políticas de habitação nos territórios rurais e de baixa densidade. Participaram 8 técnicos municipais e 1 vereador, das áreas da Acção Social e Obras Públicas, dos concelhos de Cantanhede, Coimbra, Covilhã, Fundão, Guarda, Mangualde e Mealhada.

Enquadramento

A criação da Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), em 2017, e da Lei de Bases da Habitação (LBH), em 2019, procurou descentralizar os processos de governação, posicionando os municípios como agentes centrais das políticas de habitação, através do lançamento de novos instrumentos como as Estratégias Locais de Habitação (ELH) e as Cartas Municipais de Habitação (CMH). No entanto, esta mudança cria uma tensão central que é o fio condutor da nossa investigação: Até que ponto os governos municipais conseguem mobilizar suas práticas e conhecimentos locais quando os programas nacionais (1º Direito – Programa de Apoio à Habitação e BNAUT – Bolsa de Alojamento Urgente e Temporário) e mesmo os prazos de acesso aos fundos comunitários são definidos centralmente?

Este Fórum teve como objetivo não apenas mapear estes desafios para o caso dos territórios rurais e de baixa densidade da Região Centro, mas também construir um espaço de diálogo entre técnicos municipais e a Academia.

Os resultados parciais do Fórum destacam como os técnicos municipais operam dentro de sistemas de governação centralizados, gerindo diversas escalas de tomada de decisões, tempos e dinâmicas políticas;  no entanto, as suas práticas locais revelam um potencial transformador. Os técnicos reinterpretam os esquemas nacionais para se adequarem às realidades territoriais, desde onde propõem formas alternativas de governação. Em última análise, examinar a governança em contextos de “não-centralidade” também desafia as hierarquias convencionais de produção de conhecimento. Isso nos obriga a questionar não apenas como os recursos circulam dentro do território português, mas também como as práticas locais, em contextos contingentes de capacidades técnicas ou recursos humanos, podem instituir novas práticas e remodelar as estruturas políticas regionais ou nacionais.

Tais práticas estão em consonância com teorias mais amplas de democratização impulsionada pela governança (Warren, 2009) e coprodução de conhecimento político (Jasanoff, 2004; Fischer, 2009), que enfatizam que a legitimidade democrática depende cada vez mais da capacidade das instituições de integrar conhecimentos e perspetivas diversas. Nesse sentido, a dimensão transformadora do conhecimento e da Academia pode decorrer da sua capacidade de, dentro dessas brechas institucionais, questionar algumas relações de poder e a transformação de espaços de deliberação em espaços de co-criação, co-decisão e co-gestão.

Figura 1 – Mesas de trabalho

Aspetos Metodológicos

Uma abordagem participativa à produção de conhecimento pode combinar várias técnicas de investigação, como “quantitativas” e/ou “qualitativas”, mas geralmente dá prioridade a workshops de construção coletiva de conhecimento. A diferença fundamental em relação às duas abordagens reside na finalidade da recolha de informação e implica, desde logo, a devolução da informação à própria população, grupo ou coletivo, para que, apoiados por técnicas adequadas, sejam essas pessoas a planear as próprias estratégias de superação aos bloqueios identificados.

A manhã foi dedicada ao trabalho em mesas temáticas, onde os técnicos analisaram as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças (“SWOT”) associadas a duas dimensões da política de habitação: a dos instrumentos locais (ELH e CMH); e a dos programas nacionais, como o 1.º Direito e o BNAUT.

Ainda antes do almoço, a partir da técnica do sociograma ou “mapa de atores”, discutimos os posicionamentos dos diferentes atores sociais (institucionais, base associativa e base social) que integram os diferentes níveis das políticas de habitação face à questão em debate – a favor, afins, diferentes ou em contra –, de acordo com o grau de poder e os tipos de relações atribuídas a cada um. Este exercício serviu como ponto de partida para a sessão da tarde, ajudando-nos a refletir “com quem” devemos planear a superação das fraquezas e ameaças identificadas nas mesas anteriores.

Figura 2 e 3 – Sociograma ou mapa de atores

À tarde, o grupo reuniu-se em plenária, na qual os técnicos fizeram a devolução dos resultados das mesas e, após discussões, chegamos a uma síntese das principais fraquezas, ameaças, forças e oportunidades – a partir daí, fizemos o exercício de uma “SWOT propositiva”. A partir das fraquezas, discutimos como anulá-las ou reduzi-las; a partir das ameaças, como evitar ou atenuá-las; das forças, como ampliá-las ou mantê-las; e oportunidades, claro, como aproveitá-las.

Produção de Conhecimento a Partir da Base, algumas propostas dos técnicos municipais

As discussões mostraram como as políticas de habitação se confrontam, nos territórios rurais e de baixa densidade, com problemas estruturais de base, tensões de escala, temporalidades políticas e formas de conhecimento local que moldam a capacidade de ação municipal.

Essas foram algumas das propostas que saíram da “SWOT propositiva”:

  • Negociação dos critérios europeus – Necessidade de adaptar indicadores e métricas de elegibilidade dos financiamentos europeus às especificidades nacionais e territoriais;
  • Articulação regional – Reforço do papel das Comunidades Intermunicipais (CIM) e das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), dotando-as de maiores competências e poder de decisão;
  • Diferenciação de programas por densidade – Criação de programas com legislação e financiamento ajustados às realidades dos territórios de baixa e alta densidade.
  • Reativar estruturas locais de proximidade – Criação de equipas multidisciplinares permanentes, inspiradas nos antigos Gabinetes Técnicos Locais (GTL) das décadas de 1980/90.

Um dos momentos mais produtivos foi a discussão sobre o papel do BNAUT (Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário) – com grande expressão na Região Centro – enquanto instrumento de articulação territorial, capaz de responder a fenómenos transversais como incêndios, cheias e despovoamento, bem como à falta de mão de obra no trabalho agrícola, através da atração e acolhimento de populações migrantes. A ideia de uma coordenação intermunicipal, a partir da CCDR e das CIMs, surgiu como proposta concreta de cooperação regional.

Figura 4 – Plenária – ‘SWOT Propositiva’

Próximos passos

Como dizia um dos técnicos, “desenha-se tudo para um território, que tem assimetrias tão grandes… que se esquece dos pequenos territórios, e pensa-se só nos grandes territórios. (…) quando, praticamente, não nos conhecemos uns aos outros. Não sabemos onde estão as dificuldades”. Conforme fomos defendendo, embora essas condicionantes possam impor dificuldades aos municípios rurais e de baixa densidade, as suas tentativas de superação podem revelar formas criativas e inovadoras de governação. Portanto, incluir esses agentes e seus conhecimentos, assim como os conhecimentos das diversas populações locais, poderá informar processos transformadores na formulação de políticas de habitação.

O projeto LOGO entra agora na fase de estudos de caso – entre eles, um conjunto de municípios da Raia, na fronteira leste com Espanha – para continuar a aprofundar o conhecimento sobre as diferentes realidades do território português e as possíveis articulações intermunicipais, regionais ou fronteiriças.

Bruna Lee Azado (Faculdade de Arquitetura, Universidade do Porto) é bolseira de mestrado no projeto LOGO – The Local Governance of Housing Policy. Possui formação avançada em metodologias participativas para o desenvolvimento rural e gestão territorial (RedCIMAS/UCM, Espanha), bem como em perspectivas e metodologias participativas para o aprofundamento da democracia (CLACSO, Argentina), com especialização adicional em Sistemas de Informação Geográfica. bsilva@arq.up.pt

Mudanças Climáticas, secas e segurança hídrica no município de Campina Grande, Região Semiárida da Paraíba, Brasil

Por: Rafael Albuquerque Xavier

De acordo com o 6° Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, 2023), entre 3,3 e 3,6 bilhões de pessoas vivem em vulnerabilidade face às mudanças climáticas. O aumento de eventos meteorológicos e climáticos extremos tem exposto milhões de pessoas à insegurança alimentar aguda e reduzido a segurança hídrica. Dentre esses fenômenos climáticos, as secas têm se tornado cada vez mais severas e frequentes, comprometendo a segurança hídrica em diversas regiões do mundo, principalmente das zonas áridas e semiáridas.

Dentro desse contexto, está sendo desenvolvido uma pesquisa sobre os impactos das mudanças climáticas na segurança hídrica no município de Campina Grande na Paraíba, região semiárida do Brasil. Esse estudo faz parte do meu pós-doutorado junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), sob supervisão de Luísa Schmidt e Carla Gomes, e está inserido dentro do projeto global “Desafios escalares da governança da água em territórios hidrossociais no Brasil em contexto de mudanças climáticas: um estudo comparado com México, Portugal e Inglaterra”, coordenado pelo Prof. José Irivaldo Alves Oliveira Silva. Como parte integrante das ações desse projeto, encontra-se também no ICS-ULisboa realizando seu estágio de doutorado sandwich a doutoranda Maria de Lourdes Saturnino Gomes, da Universidade Federal de Campina Grande, com o projeto “Governança da água nas dimensões político-institucionais em territórios hidrossociais no Cariri Paraiba”.

Como objetivo principal o estudo busca analisar os impactos das mudanças climáticas sobre a segurança hídrica do principal reservatório que abastece Campina Grande e região. Dessa forma, estão sendo elaborados cenários futuros dos impactos das mudanças climáticas sobre a bacia hidrográfica de contribuição do açude Epitácio Pessoa e, assim, discutir a sua segurança hídrica para as próximas décadas. A pesquisa utiliza bases de dados globais e modelos preditivos para as mudanças climáticas neste século, além de dados históricos dos volumes do reservatório, do crescimento econômico e populacional.

O município de Campina Grande está localizado na região semiárida do Brasil, especificamente no Estado da Paraíba, e possui cerca de 420 mil habitantes. Ao longo de sua história, o município sempre teve o abastecimento de água como um entrave ao seu crescimento e, nesse sentido, a construção de diversos açudes (albufeiras) foi necessária para acompanhar o seu desenvolvimento.

Durante os séculos XIX e XX, Campina Grande foi abastecida por diversos reservatórios que sempre colapsaram à medida que o município se desenvolvia. A figura 1 mostra a cidade de Campina Grande e três desses reservatórios que foram construídos e abandonados por não atenderem a demanda hídrica crescente. Atualmente esses reservatórios foram incorporados na cidade como áreas de lazer e cumprem função paisagística.

Figura 1. Parte da cidade de Campina Grande com destaque para os açudes Velho, Novo (foi aterrado) e Bodocongó. Foto: Gabriel de Paiva Cavalcante, acervo Geografia da Paraíba, 2024.

A situação hídrica só teve maior estabilidade com a inauguração do Açude Epitácio Pessoa em 1957 e da adutora construída para levar água para Campina Grande em 1958. Assim, o Açude Epitácio Pessoa, ou Açude Boqueirão, com capacidade inicial de 536 hm3, abastece Campina Grande e mais 22 municípios da Paraíba.

Desde então, acreditou-se que o problema da insegurança hídrica estava resolvido. Recentemente, o reservatório enfrentou a pior seca da sua história, entre os anos de 2012 e 2017, levando Campina Grande e região a um longo racionamento de água que durou de dezembro de 2014 até agosto de 2017.

Em abril de 2017, o açude Epitácio Pessoa atingiu o pior nível volumétrico da sua história, com apenas 2,9% da sua capacidade total (Figura 2). Essa situação dramática foi gradativamente sendo superada com o início da chegada das águas da transposição do Rio São Francisco. Aceleraram as obras do eixo-leste para que as águas chegassem mais rápido ao Rio Paraíba, e deste até o açude.

Figura 2. Imagens de Satélite do Açude Epitácio Pessoa. Fonte: Google Earth.

Essa seca mostrou o quanto a insegurança hídrica continua a estar presente em Campina Grande. Em tempos de mudanças climáticas, acende o alerta sobre as previsões de aumento de temperatura, diminuição dos totais de precipitação, aumento da concentração das chuvas e principalmente e o agravamento do balanço hídrico negativo para as próximas décadas. Por outro lado, destaca-se a crescente demanda hídrica na região. Campina Grande teve um aumento populacional de 115%, nos últimos 50 anos, e de 107% no seu PIB, nos últimos 10 anos, revelando novos padrões de produção e consumo.

Diante desse cenário, qual o nível de segurança hídrica do açude Epitácio Pessoa para o decorrer deste século? Soma-se a este contexto sensível, os projetos de expansão da infraestrutura hídrica previstos pelo Governo do Estado, que visam aumentar a captação e distribuição de água a partir do açude Epitácio Pessoa.

Todos esses reservatórios, incluindo o rio São Francisco, dependem de água das chuvas para a recarga dos mananciais. As previsões são de cenários desfavoráveis para a segurança hídrica no semiárido brasileiro. Ao que tudo indica, o açude Epitácio Pessoa sofrerá cada vez mais com as secas e dependerá muito mais das águas da transposição para sua manutenção hídrica.

Assim, esse estudo contribuirá com a análise da segurança hídrica de Campina Grande e região a partir da discussão sobre a vida-útil deste reservatório face às previsões das mudanças climáticas para este século. Por fim, serão propostas alternativas de mitigação das crises hídricas e adaptação aos novos cenários climáticos.

Rafael Albuquerque Xavier é investigador visitante no ICS ULisboa. Graduado em Geografia, mestre em Geografia e doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor Associado do Departamento de Geografia da Universidade Estadual da Paraíba, é Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UEPB e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPB. Coordena o grupo de pesquisas sobre Geomorfologia e Hidroecologia de Ambientes Tropicais (GEGHAT).

Envolvimento de cidadãos no armazenamento geológico de carbono offshore: uma exposição/evento na Figueira da Foz

Por: Ana Delicado, Jussara Rowland e Joana Sá Couto

É crescentemente reconhecida a necessidade de envolver as comunidades na implementação de tecnologias de mitigação das alterações climáticas. Das energias renováveis à mobilidade elétrica, do hidrogénio ao armazenamento geológico de carbono, é crucial auscultar os cidadãos, para entender as suas preocupações e expectativas, identificar as condições de aceitação e adoção, desenvolver salvaguardas e garantias que permitam uma descarbonização justa.

No âmbito do projeto PilotSTRATEGY CO2 Geological Pilots in Strategic Territories, financiado pela União Europeia (programa Horizonte Europa), que se foca nas potencialidades da captura e armazenamento de CO2 em França, Portugal, Espanha, Grécia e Polónia, temos desenvolvido várias atividades de envolvimento dos cidadãos e stakeholders, desde reuniões regulares da Comissão Regional de Stakeholders a um workshop com cidadãos em Fevereiro de 2024. Estas atividades têm ocorrido na zona da Figueira da Foz, onde etapas prévias do projeto identificaram as melhores condições para o armazenamento geológico de carbono no subsolo marinho.

Figura 1 Sinalética a promover o evento numa área central da Figueira da Foz, Setembro de 2025. Fonte: as autoras.

Neste sentido, no dia 13 de setembro de 2025, organizámos uma exposição/evento no Meeting Point da Figueira da Foz (debaixo da Esplanada Silva Guimarães, junto à praia) (Figura 1), onde procurámos disponibilizar informação sobre o projeto e recolher a opinião dos cidadãos. O evento foi apoiado pela Câmara Municipal da Figueira da Foz através da cedência do espaço, participação e ajuda na divulgação.

A exposição consistia numa secção inicial de enquadramento, em formato de posters, desenvolvida pela equipa ICS, uma secção de natureza técnica, concebida pela equipa da Universidade de Évora, com base em posters, suportes audiovisuais, modelos e espécimes geológicos. Na secção final, era pedido a cada visitante que partilhasse de forma escrita quais as suas preocupações e os benefícios deste projeto na sua opinião pessoal e por fim, uma votação sobre se estaria de acordo com o projeto ao largo da Figueira da Foz. Os investigadores estavam presentes ao longo da tarde para esclarecer as dúvidas dos visitantes e debater com eles diferentes aspetos do projeto.

Figura 2 Fotografias da exposição. Fonte: membros da equipa

Tivemos cerca de três dezenas de visitantes, homens e mulheres, alguns em família, outros sozinhos, alguns previamente conhecedores do projeto, outros atraídos pela divulgação feita. A maioria dos visitantes passou quase uma hora no espaço, observando, lendo, escutando atentamente as explicações, fazendo perguntas, comentando os materiais da exposição.

Ainda que a maioria dos visitantes se tenha mostrado favorável ao projeto de armazenamento de carbono, expressaram também as suas preocupações: questões de segurança (terramotos, fugas, contaminação ambiental, transporte), a pegada de carbono do próprio projeto, os custos (e quem os financiará) e os atrasos burocráticos, a necessidade de consultar a comunidade e o risco de atrasar ou renunciar à redução das emissões causadoras das alterações climáticas. Mas também reconheceram benefícios, como a mitigação das alterações climáticas e a proteção do ambiente, a responsabilização das indústrias, os ganhos económicos e a criação de emprego.

O evento foi bem-recebido, elogiado pela sua transparência e disponibilidade dos investigadores responderem às diferentes preocupações e dúvidas dos visitantes. Foi especialmente valorizado o facto de o evento ser feito numa fase embrionária do projeto e não quando as decisões já estão tomadas. No entanto, pelos comentários deixados nas redes sociais, nas publicações de divulgação do evento, é possível perceber que também há oposição à proposta do projeto, com críticas centradas no risco de favorecer soluções tecnológicas para as alterações climáticas em lugar da redução de emissões e de soluções baseadas na natureza. Estas discussões fazem parte do processo participativo e só demonstram o interesse das pessoas em envolver-se em projetos que afetam, de forma mais ou menos direta, a sua vida.

Algo que retiramos desta experiência é, sem dúvida, o valor das colaborações interdisciplinares: sem os módulos desenvolvidos pela equipa da Universidade de Évora, a exposição teria sido mais limitada e dificilmente geraria o interesse e o debate que esta proporcionou. Por fim, fazemos um balanço positivo dos meios utilizados para recolher dados científicos, não só os habituais post-its e votações, mas também a presença de uma antropóloga que fez observação participante durante o evento, registando as questões e os comportamentos de visitantes e investigadores (a autora Joana Sá Couto).

O evento cumpriu a sua função de criar um espaço aberto, disponível a todos os que quisessem participar. No entanto, é necessário notar que a abertura formal não se traduz necessariamente em participação efetiva. Por desconhecimento do evento ou por autoexclusão, a participação não foi tão alargada como o esperado e, apesar dos esforços de divulgação, o número e diversidade dos visitantes ficou aquém do almejado. Como tal, esta experiência não deve ser tomada como uma consulta à população, nem nos permite tirar conclusões firmes sobre a aceitação social da tecnologia. Ainda assim, o exercício revelou o valor de criar espaços de diálogo, mas mostrou que, para serem efetivos, os processos participativos têm que ir mais além, isto é, ser continuados, em formatos múltiplos e direcionados a diversas populações-alvo. Os resultados deste evento irão ser incorporados num relatório sobre envolvimento dos cidadãos, que irá contribuir para o desenho de recomendações sobre este tema em projetos de captura e armazenamento de carbono.

Ana Delicado é socióloga e investigadora principal do ICS-Ulisboa.

Jussara Rowland é socióloga, investigadora auxiliar no INESC-ID e investigadora associada no ICS-Ulisboa.

Joana Sá Couto é antropóloga, doutorada pelo ICS em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. Está neste momento a trabalhar no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Ecologias do Trabalho da Pesca: uma etnografia com Pescadores de Setúbal e Sesimbra

Por: Joana Sá Couto

Perante as crises ecológica, económica, política e social em que nos encontramos, as dinâmicas da pesca têm vindo a ser alteradas de várias formas, aumentando a sua invisibilização e marginalização, refletindo e reproduzindo tensões históricas e produzindo novos desafios.

É neste contexto que foi mobilizado o conceito de trabalho enquanto mediador da relação humano/natureza, para esclarecer como os pescadores de Setúbal e Sesimbra manifestam o conhecimento local da natureza no seu dia-a-dia; e como este se alterou ao longo do tempo no quotidiano e como os pescadores interpretam as políticas de conservação da natureza impostas que influenciam a sua atividade.

Ilustração 1 Mapa com as localizações dos terrenos etnográficos – Sesimbra e Setúbal – e a área do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha. Fonte: Mapa pela autora, a partir do Google Earth.

Para responder a esta interrogação, optou-se pela etnografia, em Setúbal e Sesimbra, não só pela proximidade histórica entre as duas zonas, mas pela importância do caso do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha. Apesar desta proximidade, estes contextos apresentam importantes diferenças: Sesimbra, uma vila nos recortes da Arrábida de difícil acesso, é desde 2018 o maior porto de pesca do país em volume de pescado transacionado, é também um espaço urbano limitado e cobiçado por diferentes áreas económicas. Já Setúbal é uma cidade perto da capital, em rápido processo de gentrificação, com uma comunidade piscatória em reconhecido declínio e uma lota em rápida transformação, de que é exemplo a criação de um terminal de cruzeiros na doca dos pescadores.

Ilustração 2 A autora numa traineira, em processo de trabalho de campo após uma noite atribulada no mar. Fonte: a autora

Através da etnografia foi possível encontrar nos dois lugares um sistema cumulativo de contrariedades e resistências a diversos níveis.

Ilustração 3 Sistema de Contrariedades e Resistências encontradas nos pescadores de Setúbal e Sesimbra. Fonte: a autora

No que toca às questões do rendimento, este é o que mais se associa à incerteza inerente da pesca, uma vez que este depende se se vai ao mar, do que se pesca, quanto se pesca, e do que é vendido. O preço do pescado é determinado pelas regras de mercado num leilão decrescente que historicamente tem vindo a beneficiar o intermediário e não o produtor. Para contrariar esta incerteza, os pescadores criaram uma norma social para assegurar o pagamento de todos os trabalhadores de forma equitativa, o sistema de partes, assim como a distribuição do quinhão ao final do dia de pesca. Este sistema de partes apesar de apresentar alguns benefícios como o estímulo da produtividade e promoção da cooperação também reproduz uma hierarquia dentro do barco, colocando os armadores em vantagem, principalmente visto que são eles que tomam as decisões de como se reparte o que receberam.

Outra contrariedade são os trâmites processuais, que se referem não apenas às críticas sobre a pesada burocracia e fiscalização, mas à própria lentidão e pouca eficiência dos procedimentos necessários para ter um barco, por exemplo.

No que toca às políticas e mercados, perante o contexto de crescimento da economia azul, tem vindo a ser dada mais atenção a áreas económicas com maior potencial de crescimento, como o turismo e cruzeiros, o setor portuário, a aquacultura e as energias renováveis. Mesmo no setor da pesca, existe uma tendência geral para privilegiar a pesca industrial e a aquicultura em detrimento da pequena pesca.

Paralelamente, os pescadores são afastados dos processos de decisão no que toca à gestão da sua atividade e da gestão do espaço onde a praticam. Também a Política Comum das Pescas, que sentem ser uma imposição, é muito criticada por não corresponder às realidades locais.

Outro conceito que se mostrou central é o de ocean grabbing ou blue grabbing, que se refere à expropriação da pesca em nome da conservação, gestão ou desenvolvimento. Tem origem em formas de gestão e governança inapropriadas que comprometem as condições socioecológicas, podendo ocorrer devido a interesses públicos ou privados resultando numa maior marginalização das comunidades costeiras.

Através da expansão capitalista, foram os sucessivos processos de mercadorização que alteraram a pesca. Desde a mercadorização do peixe, que transforma uma atividade de subsistência numa atividade comercial, à própria mercadorização da força de trabalho humana. Um exemplo disso mesmo é a introdução da força de trabalho migrante na pesca como forma de colmatar a falta de mão-de-obra.

É o caso destes migrantes que são contratados de países africanos ou do sudeste asiático e que se encontram a viver em situações precárias no porto de abrigo de Sesimbra, mas também em condições de trabalho precárias, visto que a sua cédula marítima não é reconhecida e se encontram em vários dos barcos como observadores. Estes pescadores são bastante distintos daqueles pescadores pitorescos utilizados pelos municípios como símbolo da identidade e como atração turística, ainda que desfasada das realidades presentes.

Ilustração 4 Imagem do Porto de Abrigo de Sesimbra, 2023. Fonte: a autora.

Estes exemplos de contrariedades, aumentam o contexto de crise e desvalorização em que as comunidades piscatórias se encontram, o que nos denuncia como estes processos de mercadorização alteram a valorização do trabalho, e se sentem nas relações sociais e ecológicas presentes.

Ainda assim, os pescadores resistem. Estas resistências apresentam-se de diferentes formas, ainda que os pescadores possam não ver a sua resistência como tal. Porém, é através destas que os pescadores persistem e continuam a trabalhar no mar, mesmo apesar da sombra de declínio, apesar de alguns deles acharem mesmo que a pesca vai acabar, mesmo apesar de todas as contrariedades.

O mercado torna-se independente da relação metabólica entre humanos e natureza, dominando-a, impondo um novo sistema em que a natureza se torna uma mercadoria barata que se vende para acumulação de capital. Uma relação outrora de equilíbrio e troca, hoje pode caracteriza-se por uma degradação sem precedentes.

Argumento, assim, que a relação das comunidades piscatórias com a natureza está perante um tipping point, em risco de uma rutura metabólica.

A dissociação do humano e da natureza no raciocínio hegemónico e eurocêntrico, usada para justificar a dominação através de classe, raça, género e espécie, também permitiu uma desvalorização histórica do trabalho que seja manual, sujo, difícil, como a pesca, mas que é mediador indispensável da nossa relação com o ambiente.

Ao equacionarmos questões de justiça e direitos humanos na nossa análise, ao identificarmos as relações de poder, quem tem vindo a ser silenciado e quem tem vindo a ser priorizado nos discursos da economia azul, torna-se imperativo reavaliar as formas de governança destes recursos ancestralmente comuns, assim como formas de implementação de um novo paradigma económico e de gestão.

Até lá, os pescadores de Setúbal e Sesimbra continuam a resistir e a pescar, a partilhar conhecimento com quem os quer ouvir, no seu silêncio e humor, uma vez que, como me disse um pescador, “Enquanto houver pescadores, há peixe”.

Joana Sá Couto é antropóloga, doutorada pelo ICS em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, com a tese Ecologias do Trabalho da Pesca: uma etnografia com Pescadores de Setúbal e Sesimbra, defendida em julho de 2025. Está neste momento a trabalhar no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). j_sacouto@disroot.org

COP-30 e as perspectivas sócio comunitárias no tema da eletricidade no Brasil

Por: Thiago Silva, Ana Horta e Vera Ferreira

Em novembro deste ano ocorrerá, no Brasil, a 30ª Conferência das Partes (COP-30), tendo a transição energética como um dos temas centrais. Na condição de país emergente e situado entre as maiores economias da América Latina, o Brasil assumirá papel de destaque nas discussões sobre mudanças climáticas e na transição para uma economia de baixo carbono. Tal protagonismo revela-se relevante não apenas por abrir espaço para que os países apresentem suas iniciativas e compromissos, mas também por permitir que o mundo observe, no centro da Amazônia Brasileira, as metas assumidas pelo governo nacional.

Nos últimos anos, o posicionamento do Brasil em relação às mudanças climáticas oscilou de forma significativa. Entre 2019 e 2022, o país enfrentou críticas internacionais devido ao enfraquecimento de políticas ambientais, ao aumento do desmatamento na Amazônia e a uma postura menos comprometida nas negociações multilaterais. Em contraste, a gestão iniciada em 2023 buscou retomar o protagonismo brasileiro, reafirmando compromissos no âmbito do Acordo de Paris, anunciando metas de desmatamento zero até 2030 e sinalizando investimentos em energias limpas e inovação tecnológica para acelerar a transição para uma economia de baixo carbono. Essa mudança de postura política fortalece o papel do Brasil no debate climático global e cria expectativas sobre a liderança do país no evento deste ano.

O debate sobre a transição energética será essencial para mitigar os impactos das alterações climáticas, exigindo a intensificação do processo de substituição das fontes fósseis por alternativas renováveis. O Brasil, anfitrião da COP-30, é atualmente um grande produtor de energia renovável, com destaque para as fontes hidrelétrica e solar, que em 2024 corresponderam a 89% da matriz elétrica. O país terá a oportunidade de evidenciar seus avanços e perspectivas no setor elétrico, mas também de explicitar como pretende superar desafios relacionados à modernização da infraestrutura elétrica e à redução das emissões de gases de efeito estufa.

Questões como a justiça da transição para as populações mais vulneráveis e as implicações econômicas e sociais de uma mudança acelerada na matriz energética certamente integrarão a agenda. O Brasil necessitará equilibrar suas demandas de desenvolvimento econômico e inclusão social com a urgência de mitigação climática. A Conferência configurará, portanto, espaço privilegiado para a apresentação de modelos inovadores e inclusivos que apontem para uma matriz energética mais sustentável, acessível, universal e democrática.

As energias renováveis de base comunitária despontam como temática relevante sobretudo quando se considera o acesso à eletricidade por grupos em situação de vulnerabilidade. Trata-se de iniciativas que recorrem a fontes como a solar, a eólica e a biomassa, buscando beneficiar diretamente as comunidades, frequentemente com sua participação ativa na produção, distribuição e gestão da energia, em resposta à ausência de concessionárias ou à limitação das grandes redes. Experiências de geração solar comunitária já vêm sendo implementadas em áreas rurais e comunidades isoladas; contudo, o Estado brasileiro precisa reforçar seu compromisso no enfrentamento da pobreza energética, que ainda afeta milhares de cidadãos da região amazônica, do semiárido nordestino e de territórios minerários.

Iniciativas como o Programa Luz para Todos (2002-2028) têm desempenhado papel relevante na universalização da eletricidade, incluindo a incorporação de soluções baseadas em fontes renováveis em localidades remotas. Nas últimas décadas, colhem-se os frutos dessa política, que garantiu acesso à energia para mais de 98% da população brasileira. Todavia, persistem situações de baixa qualidade no fornecimento. Comunidades indígenas, em particular, têm emergido no debate, dada a necessidade de soluções energéticas adequadas para superar cenários de pobreza energética. O Programa Luz para Todos assumiu o compromisso de atender esses territórios, ao mesmo tempo em que caminha para o encerramento de seu ciclo, após mais de duas décadas de vigência.

Em 2022, novos avanços ocorreram com a promulgação da Lei nº 14.300, que estabeleceu o marco legal da Micro e Minigeração Distribuída (MMGD). A legislação concedeu respaldo normativo para que pequenos consumidores e empreendimentos atuem de forma descentralizada na geração e distribuição de energia. Esse processo favoreceu a criação de cooperativas e microrredes, ampliando a participação comunitária na governança local e gerando benefícios socioeconômicos relevantes, além de estimular um sentimento de maior autonomia no controle sobre as próprias fontes energéticas. Nesse contexto, cabem aos consumidores análises quanto à relação custo-benefício, às tecnologias utilizadas, à escala das centrais geradoras, à localização (rural ou urbana) e às condições de financiamento.

A este respeito, o diálogo entre investigadores do Brasil e de Portugal contribui para aprofundar a compreensão dos diversos desafios que se colocam à participação ativa dos cidadãos nas novas iniciativas de energia descentralizada. Aspectos como o acesso das populações a informação, a literacia energética ou a complexidade dos processos administrativos, por exemplo, podem colocar importantes entraves à implementação destas soluções, tal como se tem verificado em Portugal.

Figura 1 Micro e minigeração distribuída; Fonte: Agência Nacional de Energia Elétrica do Brasil, 2025.

De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica, o debate sobre eletricidade no âmbito da COP-30 e seus desdobramentos exigirá acompanhamento contínuo, a fim de verificar em que medida os compromissos assumidos se materializarão em ações concretas. Há soluções já delineadas e, sobretudo, a necessidade de maior sensibilidade na abordagem da transição energética em comunidades periféricas brasileiras. A MMGD, os arranjos locais e o processo de transição energética configuram-se como pontos centrais para a construção de alternativas que superem desigualdades históricas no acesso à eletricidade. O Brasil tem a oportunidade de apresentar, com transparência, propostas capazes de transformar a vida da população em todas as regiões do país.


Thiago Silva é Investigador Visitante no ICS-ULisboa, com um Pós-doutoramento em Administração na PUC Minas e Doutorado em Desenvolvimento e Ambiente. Os autores agradecem o financiamento público do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Brasil (CNPq), Processos nº 403913/2024-1 e 200050/2025-7. thiago.silva@academico.ufpb.br

Ana Horta é Investigadora Auxiliar no ICS-ULisboa e membro do grupo de investigação SHIFT. Doutorada em Sociologia, faz parte da equipa de coordenação da Secção Ambiente e Sociedade da Associação Portuguesa de Sociologia.

Vera Ferreira é Doutorada em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável no ICS-ULisboa.

Democracia para o Clima? O papel (ainda limitado) das Inovações Democráticas na Sustentabilidade Ambiental

Por: José Duarte Ribeiro, Roberto Falanga e João Moniz

A crise climática colocou em xeque a eficácia das instituições democráticas tal como as conhecemos. A incapacidade para responder de forma célere e justa a desafios ecológicos complexos tem alimentado o apelo por novas formas de governança que combinem democracia e sustentabilidade. Neste contexto, as chamadas inovações democráticas (IDs) – como orçamentos participativos, mini-públicos e modelos colaborativos e participativos de governança – têm sido promovidas como instituições e processos promissores para reimaginar o papel dos cidadãos na formulação de políticas públicas ambientais.

Mas será que estas experiências têm realmente contribuído para uma transição ecológica justa e eficaz?

Essa foi a pergunta central de um artigo científico publicado recentemente por nós, na revista Sustainable Development, no âmbito do projeto europeu INCITE-DEM. Através de uma revisão sistemática da literatura focada no contexto europeu, os autores mapearam a relação entre diferentes tipos de IDs e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), procurando compreender o seu real impacto nas políticas e práticas de sustentabilidade ambiental.

De promessas a resultados: o que diz a literatura?

A análise sistemática identificou 129 estudos focados em experiências europeias de participação cidadã com relevância para a sustentabilidade ambiental. Os resultados confirmam que, embora as IDs não sejam uma panaceia, podem desempenhar um papel significativo na aproximação entre cidadania ativa e governança ambiental.

Muitos dos estudos demonstram que as IDs contribuem para a sensibilização dos cidadãos, para o fortalecimento do capital social e para a formulação de políticas públicas mais alinhadas com as preocupações ecológicas locais. O envolvimento dos cidadãos em decisões sobre recursos hídricos (ODS 6), energia limpa (ODS 7), consumo sustentável (ODS 12) e ação climática (ODS 13) tem permitido integrar saberes locais e promover soluções contextualizadas. Contudo, a literatura revela também limites importantes: muitas destas iniciativas são episódicas, dependentes de vontades políticas locais, e raramente produzem mudanças estruturais. O impacto real sobre as decisões políticas e os processos institucionais tende a ser frágil, especialmente quando não existem mecanismos de acompanhamento, de responsabilização ou de integração dos resultados na administração pública.

Mini-públicos, orçamentos participativos e governança colaborativa: diferentes caminhos, desafios semelhantes

As três principais formas de inovação democrática analisadas – mini-públicos (como assembleias de cidadãos), orçamentos participativos (OP) e modelos de governança participativa e colaborativa – oferecem diferentes respostas ao desafio de envolver os cidadãos na governação ecológica.

Os mini-públicos têm ganho protagonismo, especialmente na forma de assembleias climáticas nacionais ou municipais. Estas iniciativas, como se viu na Irlanda, França ou Reino Unido, procuram informar e deliberar sobre temas complexos com cidadãos selecionados aleatoriamente. No entanto, enfrentam dois desafios críticos: a falta de poder vinculativo e a ausência de mecanismos para garantir que as suas recomendações sejam incorporadas em políticas concretas. O estudo aponta que o entusiasmo inicial destas assembleias pode ser minado pela perceção de que “nada muda”, o que compromete a confiança pública a longo prazo.

Já os OPs demonstraram versatilidade na incorporação de preocupações ambientais, indo além da sua origem voltada para a justiça social. Em várias cidades europeias, o OP tem sido usado para financiar projetos de agricultura urbana, eficiência energética, mobilidade sustentável ou regeneração de espaços verdes. Ainda assim, subsiste a crítica de que muitas vezes estas escolhas estão limitadas a envelopes orçamentais reduzidos e a ciclos curtos, o que dificulta a sua capacidade para enfrentar os desafios estruturais das transições ecológicas.

No caso da governança participativa e colaborativa, a literatura destaca o seu potencial para envolver múltiplos atores – como comunidades locais, autoridades públicas, investigadores e ONGs – em processos de gestão de recursos naturais, planeamento territorial ou conservação da biodiversidade. No entanto, a complexidade dos arranjos institucionais e as barreiras de confiança entre atores frequentemente impedem a sua eficácia. A falta de clareza sobre competências e responsabilidades, associada à fragmentação das políticas ambientais, continua a dificultar a adoção de soluções sustentáveis integradas.

Entre o ideal participativo e os limites institucionais

Um dos objetivos do estudo é evidenciar que o potencial transformador das IDs depende menos do seu desenho formal e mais das condições institucionais em que são implementadas. Sem enquadramento político, apoio institucional e mecanismos que garantam continuidade, estas iniciativas correm o risco de se tornarem exercícios simbólicos, com pouco efeito prático.

Este diagnóstico é particularmente relevante quando se pensa na urgência e complexidade da crise climática. A literatura analisada pelos autores mostra que a maior parte das IDs continua a operar numa lógica de incrementalismo – promovendo ajustes em vez de rupturas – e raramente desafia os interesses estabelecidos ou os paradigmas dominantes de crescimento económico. Como sublinham os próprios autores, o ideal democrático de co-criação de políticas públicas enfrenta limites reais num sistema ainda marcado por desigualdades, resistências burocráticas e prioridades políticas de curto prazo.

O estudo conclui com um apelo a um duplo aprofundamento: da democracia e da sustentabilidade. Isso significa não apenas multiplicar espaços participativos, mas sobretudo garantir que esses espaços tenham impacto efetivo. Implica também alinhar os mecanismos participativos com objetivos de longo prazo e com compromissos ecológicos claros.

Mais do que uma agenda de inovação institucional, trata-se de uma reconfiguração das prioridades do próprio sistema político. A governança sustentável exige uma democracia que não se limite a escutar os cidadãos, mas que os envolva desde o diagnóstico até à implementação e monitorização das soluções. E isso só será possível com estruturas que transcendam a lógica eleitoral imediatista e permitam decisões informadas, equitativas e com visão de futuro.

Em última instância, este artigo oferece uma mensagem clara: não há sustentabilidade sem democracia, mas também não há democracia ecológica possível sem transformação institucional. As IDs são apenas tão eficazes quanto as instituições que as acolhem permitem que sejam. E por isso, o desafio é político, e não apenas metodológico.

Figura 1 – Ilustração utilizada na campanha “El Saler per al poble”

El saler al poble, [detalhes de um poster]1974, Asociación Española de Ordenación del Medio Ambiente

Este é um dos casos históricos de participação cidadã recolhidos na pesquisa de arquivo do projecto INCITE-DEM. É um exemplo, entre vários, de conflitos ambientais no período pós-ditadura franquista em Espanha: El Saler, Valência (1973 – 1986). Durante o verão de 1974, foi lançada uma campanha cidadã sob o lema “El Saler per al poble”, através de uma recolha de assinaturas, que levou a Câmara Municipal de Valência a recuar e, em dezembro desse ano, a aprovar uma remodelação do Plano de Ordenamento que iria afectar o bosque, junto ao mar, da Devesa de El Saler. Esta decisão implicou o cancelamento de 23 torres de apartamentos, a recuperação de 70 hectares da zona arenosa e a transferência da parte edificável para outra zona.

José Duarte Ribeiro concluiu recentemente o seu doutoramento em Sociologia na Middle East Technical University (METU), em Ancara, Turquia. Conta com investigação em Portugal e na Turquia na área da sociologia rural e movimentos sociais. É investigador de pós-doutoramento no ICS no projecto europeu INCITE-Dem. É também membro da equipa editorial deste blogue.

Roberto Falanga é Investigador auxiliar no ICS, trabalha sobre processos participativos e deliberativos nas políticas públicas. É coordenador no ICS dos projetos europeus Incite-Dem, Infrablue e INSPIRE.

João Moniz concluiu recentemente o seu doutoramento em ciência política pela Universidade de Aveiro e o seu percurso profissional conta com várias participações em projetos de investigação, tanto a nível nacional como internacional. É investigador de pós-doutoramento no ICS no projecto europeu Incite-Dem.

“Mãe, porque é que as pessoas não bebem leite de porca?”: da histórica invisibilização dos animais

Por: Maria Inês Antunes

Em setembro de 2024, com 3 anos, a minha filha Alice fez-me repensar todo o sistema alimentar para tentar encontrar a razão para os humanos só beberem leite de herbívoros (vaca, ovelha, cabra, burra e búfala) na cultura ocidental. A primeira razão que considerei foi o valor nutricional, mas essa explicação cai por terra quando consideramos o facto de que o leite de porca é bastante rico em gordura e proteína (mais até do que o de vaca). Um conjunto diversificado de factores podem influenciar esta decisão: as glândulas mamárias das porcas são diferentes das da vaca e isso faz com que as máquinas usadas hoje em dia para extracção do leite sejam inúteis; tirar leite manualmente às porcas seria impraticável (em pequena escala há pelo menos dois relatos de ordenha manual de porcas: um nos Países Baixos, para se tentar produzir queijo a partir do leite, e outro na China, para se tentar comprovar o valor nutricional do leite); a porca produz menos quantidade de leite em cada lactação; o porco produzido actualmente é, regra geral, para consumo de carne; o porco é um animal rejeitado para consumo em algumas religiões e grupos sociais.

O que têm estas razões em comum? Uma visão economicista e, por isso, utilitarista do porco.

Da coisificação à categorização: a invisibilização como resposta

De acordo com Cole e Stewart (2014: 16), os “animais não-humanos são primeiramente definidos e categorizados de acordo com o tipo de relação que têm com os humanos”. De uma forma simplista, podemos dizer que existem três categorias de animais de acordo com a sua utilidade para os humanos: os animais de companhia, os animais para consumo (seja como alimento, para entretenimento ou para experimentação) e os animais selvagens.

Os humanos são expostos desde a infância a imagens do porco enquanto alimento, perpetuando a coisificação do animal, a manutenção da hierarquia entre humano e porco e a categorização do porco enquanto animal para consumo.

DeMello (2012: 12) explica que, desde a revolução neolítica, os humanos trabalham com os animais. Milhares de anos após a domesticação do cão enquanto parceiro de caça, os grandes ruminantes passaram a ter um papel essencial nas sociedades humanas, enquanto fonte de trabalho, carne e leite.

Hoje em dia, o porco é dos animais mais usados em todas as áreas da sociedade, desde alimentação (humana e animal), cosmética, roupa e acessórios, cerâmica, medicina (tanto em investigação como medicação), lubrificantes e até explosivos.

Tal como acontece com muitas outras espécies, existe em todas as áreas uma invisibilidade do porco, que se torna, como disse Carol J. Adams (2010), um ‘referente ausente’ (“o ‘referente ausente’ é aquilo que separa o comedor de carne do animal e o animal do produto final”, tradução livre da autora).

Apesar de não utilizarmos em português outra palavra para o designar (como em inglês passamos de ‘pig’ para ‘pork’), muitas vezes o porco é representado por uma parte do seu corpo (‘pezinhos’ ou ‘túbaros’), por um corte ou confecção específica de uma parte do seu corpo (‘torresmo’, ‘presunto’ ou ‘toucinho’) ou por denominações puramente culinárias que retiram totalmente o animal do imaginário (‘gelatina’, ‘salsicha’ ou simplesmente ‘carne’ sem qualquer detalhe sobre a espécie animal).

Esta invisibilidade do animal é referida por alguns autores como uma contradição e é chamada “paradoxo da carne”. Aqui foi ilustrada de uma forma prática por um jornalista que decidiu dedicar alguns anos de vida a aprender a ser cozinheiro profissional:  “(…) as pessoas não querem saber exactamente o que é a carne. Para o meu vizinho (e os meus amigos, e também para mim, durante a maior parte da minha vida), a carne não é carne, mas uma abstracção. As pessoas não pensam no animal quando usam a palavra: pensam num elemento de uma refeição” (Bufford, 2012).

A carne assumiu um estatuto simbólico na cultura ocidental e, por isso, não é surpreendente a forma como as crianças vão também integrando estas invisibilidades (Policarpo et al., 2018: 207).

Cultura popular e infância: novas formas de invisibilização

Às crianças é ensinado que devem sentir empatia pelo outro, mas para isso acontecer é necessária compreensão, evitando a antropomorfização. Isso pode explicar porque é que mesmo existindo empatia da parte de quem é espectador assíduo da personagem Porquinha Peppa, seja adulto ou criança, existe uma total dissonância cognitiva criada por essa antropomorfização da porca (Figura 1).

Segundo Policarpo et al. (2018: 212, tradução livre da autora), “Uma ligação emocional próxima com os animais é encorajada em tenra idade (através de peluches fofinhos, representações engraçadas em personagens de filmes e outros elementos da cultura popular)”. No entanto, o animal continua a ser um ‘referente ausente’, na medida em que as crianças acompanham um animal antropomorfizado que se comporta como elas, como é o caso da Peppa. Dessa forma, os espectadores não precisam de fazer nenhuma associação ao comportamento natural dos porcos, porque na realidade a Peppa representa-os a eles: humanos-espectadores.

Figura 1 Alice a ler um livro da Porquinha Peppa (Maio, 2023, foto da autora)

Neste episódio em particular, Peppa prepara, juntamente com o seu irmão e pai, uma gelatina para oferecer à mãe que esteve o dia todo a trabalhar. O episódio termina com a imagem da Peppa e sua família a comer a gelatina. Ao omitir-se a origem da gelatina, que é tradicionalmente de origem animal, a maior parte das vezes de porco, cria-se uma desconexão identitária: uma gelatina é “só” uma gelatina, independentemente de ser originária de um porco, isto é, a espécie destas personagens infantis. Tem lugar desta forma uma omissão intencional – a que Eisner (1985) chama “currículo nulo” – e que apresenta os alimentos no seu estado final (como vão ser consumidos), sem existir uma apresentação de como a indústria agroalimentar e todas as actividades inerentes funcionam, impedindo as crianças de aprender sobre estes temas.

Esta representação está presente tanto em desenhos animados como na literatura infantil. Cole e Stewart (2014: 21) explicam que para os leitores mais novos a incongruência não existe, pois já estão habituados a esta negação (ou omissão) e isso já decorre com naturalidade, não sendo na maioria das vezes questionada. Há, no entanto, um horizonte de esperança. Quando as crianças crescem numa cultura de empatia para com todas as espécies, começam elas mesmas a questionar. Questões essas que são muitas vezes incómodas para os adultos. Compete-nos a nós, adultos, ter a coragem de lhes dar uma resposta.

Maria Inês Antunes desenvolve iniciativas na área da sustentabilidade alimentar, através do seu projecto Kitchen Dates, e é aluna do curso de pós-graduação Animais e Sociedade do ICS-ULisboa, coordenado por Verónica Policarpo. Este texto foi produzido no âmbito do módulo Animais, Representações e Narrativas, sob a coordenação de Jussara Rowland. mipantunes@gmail.com

Tempo, Imaginação e Transformação: Reflexões sobre a Naturescapes Spring School 2025

Por: Andresa Lêdo Marques

Vivemos num período marcado por crises interligadas — ambiental, climática e social — agravadas pelo facto de a mudança climática já não ser uma previsão futura, mas uma realidade que se sente no quotidiano, traduzida em eventos extremos e perda de biodiversidade. Em paralelo, instituições públicas e democráticas enfrentam ondas de deslegitimação e redução de financiamento, tornando ainda mais difícil responder de forma coordenada e justa a esses desafios. Também a academia vive a sua própria crise, com a pressão por produtividade, a cultura da competitividade e a precarização dos vínculos, que criam um ambiente cada vez menos propício à escuta, ao cuidado e à colaboração, especialmente para investigadores em início de carreira.

Foi neste cenário complexo e desafiante que co-organizei, juntamente com a Olivia Bina (ICS) e a Fiona Kinniburgh (ICS), entre os dias 8 e 10 de abril de 2025, a Naturescapes Spring School, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa). O evento, dirigido a investigadores/as em início de carreira, reuniu 27 participantes de diversas nacionalidades e áreas de atuação, além de 16 investigadores/as seniores que participaram como comentadores, mentores e oradores. 

A escola foi organizada no âmbito do projeto Naturescapes (Horizonte Europa), e teve como tema central: Nature-Based Solutions for Just and Transformative Futures. Este tema insere-se num debate mais amplo sobre as Soluções Baseadas na Natureza (Nature-Based Solutions – NBS), que têm ganhado destaque nos últimos anos como formas de enfrentar simultaneamente desafios ecológicos, urbanos e sociais. No entanto, as NBS também se tornaram um campo de disputa política, epistemológica e cultural. Quem decide como e onde as NBS são implementadas? De quem são os futuros que se pretendem transformar? Que conflitos e possibilidades emergem quando a “natureza” entra no centro das estratégias de desenvolvimento urbano?

A Spring School foi concebida para explorar essas e outras questões, reconhecendo as NBS como ferramentas carregadas de valores, imaginários e potenciais de transformação. Procurámos criar um ambiente de partilha e escuta, onde os participantes pudessem refletir sobre os seus próprios projetos e, ao mesmo tempo, ampliar as suas referências críticas e relacionais.

Este texto tem como objetivo partilhar um pouco dessa experiência. Mais do que um relato institucional, trata-se de refletir sobre o que significa, hoje, organizar um espaço de formação em  contramão com as lógicas de reprodução da pressa, da hierarquia e do isolamento que parecem dominar os espaços académicos 

Tempo para estar, pensar e construir

A estrutura da escola foi desenhada com uma premissa simples: o tempo importa. Nesse sentido, o evento foi pensado como um espaço de pausa, de profundidade e de presença — e o tempo foi, desde o início, um dos seus eixos estruturantes.

Inspiradas pelo modelo do Workshop do Urban Transformation Hub (UTH), decidimos criar um ritmo que permitisse não apenas mostrar projetos de investigação, mas conversar sobre eles. Escutá-los e discuti-los com atenção. Cada sessão incluía no máximo duas apresentações, e todos os participantes, organizados em grupos, tiveram a oportunidade de ler os artigos com antecedência. Estes, apresentando diferentes graus de maturação e desenvolvimento, foram comentados por investigadores seniores, que, juntamente com os demais membros do grupo, ofereceram comentários e perguntas num ambiente de colaboração e troca de ideias.

Esse cuidado foi sentido por todos e muitos partilharam da opinião de como raramente têm oportunidades tão generosas para apresentar as suas investigações com tempo suficiente para pensar, discutir e refletir sobre o seu trabalho e o dos seus pares. Mas o tempo revelou-se valioso também nos intervalos. Nos almoços partilhados no terraço do ICS, nas conversas nos coffee breaks e nos encontros informais após as sessões. Num contexto universitário onde tudo é feito para caber em 10 ou 15 minutos, oferecer tempo tornou-se um gesto quase radical. E talvez seja justamente isso que mais ficou: a desaceleração como condição para a profundidade e para o vínculo.

Figura 1: Sessão paralela, Naturescapes Spring School 2025. Fotografia de Philipp Montenegro.

Imaginação, transformação e agências

Outro elemento central foram as apresentações dos palestrantes convidados — momentos criados para ampliar as nossas referências e perspectivas. A Spring School abriu com a palestra de Ramon Sarró (ICS), que nos convidou a uma reflexão teórica sobre os desafios da separação entre natureza e cultura, e destacou o papel da imaginação como uma ferramenta importante para repensarmos as conexões entre as duas. Encerrámos o primeiro dia com uma palestra de Maarten Hajer (Universidade de Utrecht), realizada no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa. Hajer defendeu a necessidade de irmos além das abordagens meramente pragmáticas em relação às NBS, em direção a uma reimaginação mais radical das relações sócio-ecológicas, e reformular os atuais discursos políticos em torno das NBS.

Figura 2: Palestra de Maarten Hajer (Universidade de Utrecht), realizada no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa.

Tivemos ainda intervenções no segundo dia, como a palestra de Carmen Lacambra (Grupo Laera), que trouxe uma perspectiva baseada na sua vasta experiência académica e profissional na América Latina, partilhando casos concretosde integração da biodiversidade na gestão de riscos em territórios tropicais. A sua comunicação destacou a importância dos contextos sociais e culturais para a implementação das NBS, além da integração de dados científicos.

Na última apresentação de convidados externos, tivemos a palestra de. Isabel Ferreira (Universidade de Coimbra), que nos levou a pensar nas práticas participativas como práticas de transformação em si mesmas. A partir da sua ampla trajetória profissional e académica, e da atuação no projeto TRANS-lighthouses, partilhou reflexões sobre as culturas participativas, transformação e justiça, e as suas possibilidades e desafios no contexto das NBS.

Essas vozes, com as suas diferentes origens, linguagens e experiências, ajudaram a compor um mosaico crítico sobre o que transformar com e através da natureza pode significar em diversos contextos.

Considerações finais: Semear novos futuros

A experiência de co-organizar a Naturescapes Spring School foi uma tentativa deliberada de criar um espaço de trocas, crescimento e pausas. Um convite a outro ritmo e a dar corpo a um tipo de experiência que, infelizmente, raramente tem lugar num contexto académico cada vez mais competitivo. Foi um convite a uma experiência de escuta, de convivência, de cuidado.

Os três eixos temáticos da escola — governança das NBS para a justiça, significados e valores da natureza urbana, e futuros imaginados e disputados — atravessaram todas as apresentações e discussões, mas sem se tornarem caixas estanques. Pelo contrário, foram pontos de partida para que cada participante pudesse situar a sua própria investigação em relação a um campo em transformação e constante evolução.

O que fica, na perspectiva da organização, é a esperança de que a escolha do tempo como eixo estruturante tenha feito deste evento nãoa penas uma oportunidade de ampliação de conteúdo e networking, mas também a semente de uma comunidade que cultive uma cultura académica. Uma comunidade na qual o conhecimento é partilhado com honestidade, onde as diferenças são reconhecidas como potência, e onde o futuro é tratado não como um dado, mas como algo a ser construído e cuidado.

As NBS, longe de serem apenas uma técnica ou tendência, são também um campo de disputa ética, política e estética. Podemos encará-las como um convite para não tratarmos a natureza como solução rápida, mas como relação, cuidado e uma perspectiva de futuro em disputa e construção. Talvez o que fizemos nesses três dias não tenha sido responder às múltiplas crises que enfrentamos, mas sim encorajar a imaginação sobre futuros mais justos e sustentáveis — o que implica também imaginar e praticar outras formas de estar juntos — na academia, na cidade, no planeta. Num mundo em que tudo nos empurra para a velocidade e para a produtividade, criar um evento como este e com esta estrutura pode ser, paradoxalmente, um ato radical. E, quem sabe, uma semente de futuro.

Figura 3: Naturescapes Spring School 2025. Fotografia de Philipp Montenegro.

Andresa Lêdo Marques é atualmente investigadora de Pós-Doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, integrando o projeto de investigação Naturescapes: Nature-based solutions for climate resilient, nature positive and socially just communities in diverse landscapes.

Renewable Energies: The challenge of sustainability in peripheral communities in Brazil

Por: Armindo Teodósio, Thiago Silva, Andressa Nunes, Melina Gomes

Several activities that make up contemporary human life, whether in central societies with concentrated wealth or in peripheral regions, are compromised without access to quality electricity. For some, it is now a matter of renewing the energy matrix that makes our societies operate, due to the enormous challenges that humanity faces in the age of climate change. For others, it is a matter of universalizing access to electricity as a central element of quality of life within the contemporary way of life that we replicate in different regions of the planet. One pursuit does not exclude the other. When they converge, we are moving towards initiatives that address climate change within what we call a just transition, climate justice and/or environmental anti-racism. Our article addresses these challenges in the Brazilian context.

Discussing energy from the Brazilian perspective, means discussing the continuity of energy services. Issues related to the availability and quality of electricity are daily concerns for the Brazilian people in different regions of the country. If, until a few years ago, the difficulty of accessing energy and the frequent interruption of its supply were a major problem for peripheral communities throughout our territory, the energy crisis is currently manifesting itself in the city with the largest GDP in the country, the city of São Paulo, which struggles with frequent and prolonged power outages due to extreme climate events. We need to advance both in the universalization of access to energy in our country and in the provision of energy security, in addition to further advancing the supply from less polluting matrices and those that generate less negative impacts on the environment.

One of the positive aspects of the Brazilian energy matrix is ​​that, when compared to other nations, it places us in a prominent position in terms of lower impacts on the environment. However, environmental complexity requires us to be increasingly critical and demanding with the solutions we seek. This is also evident in the supply of electricity. An example of this point is the debate and weighing of the Belo Monte alternative as a strategy to provide electricity to the North region and to support energy generation in the country. Even in a less polluting and degrading matrix, that derived from hydroelectric plants, when Belo Monte is brought into the debate, nothing becomes evident or clear in terms of sustainability. On the contrary, the disservice to sustainability becomes evident in a powerful way.

In the Brazilian context, discussing the quality of energy for homes and families is not a new topic. Nor is the discussion about what the future of energy will be like for transportation, for instance, which is the sector which is one of the sectors that consumes the most energy in Brazil and in the world – about 28% of all the energy we produce. What is relatively new are the forms of energy consumption that will be available in the face of population growth and consumption challenges.

An interesting point is that talking about the future of energy is not only about how large energy concessionaires will guarantee the uninterrupted supply for municipalities, but also about discussing small-scale renewable energy production that can supply rural areas. It is about treating the service provided by large distributors as complementary and not just exclusive. It is about pointing out, perceiving and following possible paths to guarantee electricity consumption for our families.

In different parts of the world, movements based on so-called Community-Based Renewable Energy, with different local governance arrangements, have emerged. These experiences seek to materialize in the daily lives of communities and cities the access to and generation of energy on a sustainable basis, transforming the general understanding of societies about strategies for a transition towards sustainable ways of life. The governance of these projects, as a rule, activates local social capital as an asset for raising awareness, engaging and acting on the part of citizens in creating local conditions for access, generation, and distribution of energy on a sustainable basis.

These experiences serve as inspiration for us to think about and fight for community and grassroots strategies to expand the  access, generation and distribution of energy on a sustainable basis  in Brazil. By studying these experiences, we can also learn and try to overcome important challenges related to cultural and social barriers, which increase when we talk about effectively building successful community-based renewable energy experiences in the country. These challenges are linked to gender, ethnic-racial issues and the vulnerability of communities located on the periphery of large centers that concentrate infrastructure, political and economic power and quality of life in the territories. Thinking about the expansion of renewable energy without considering inequalities, as well as the fallacies and myths behind some supposedly sustainable proposals for energy generation, is to build alternatives that will further restrict access to quality energy and deconstruct the foundations for a transition towards sustainability.

In countries like Brazil, marked by the important and rich presence of black people in the social, cultural, political and economic history of the nation, but unfortunately in a condition of enslavement, exploitation, degradation, silencing and erasure of their identities and cultures, inequalities in access to energy, especially the energy produced on a sustainable basis, are abysmal. Proof of this finding is that the lack of access to quality energy in the country is marked by race, territoriality and gender: it is recurrently present in quilombola territories, indigenous territories and in urban and rural spaces with a prevalence of black communities.

Figure 1 Quilombola Territory in Brumadinho, Minas Gerais, Brazil.

Source: Authors Archive.

Figure 2 Indigenous Territory in Brumadinho, Minas Gerais, Brazil.

Homem e mulher posando para foto

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Source: Authors Archive.

Finally, in the rush to achieve energy transition, in which policies, programs and projects reorder the allocation of economic resources and generate an increase in political and social capital, especially in terms of legitimizing economic and productive initiatives, there is misinformation and ignorance about the effective contribution to sustainability in expanding, for example, the fleet of electric cars and waste incineration. There are important issues to be addressed and debates about “greenwashing” when the term energy recovery is adopted to try to give a sustainable character to large-scale waste incineration activities, which could and should be reinserted into the economy through more and better circular economy strategies. All of this affects the public debate on an effectively renewable and sustainable energy production system, making it even more complex and “swampy”.

In the Brazilian context, there is a lack of a more robust, effective and widely disseminated strategy for the design, implementation and evaluation of public energy policies based on community-based action and the effective promotion of sustainability, beyond the false, unsustainable and ecologically incorrect solutions of promoting renewable energy. There is also a lack of greater sensitivity and reorientation of the business sector towards sustainable energy. It is necessary to create space to bring together the city’s initiatives, draw the attention of city halls and state and federal governments to the issue, and invite the population to access consistent information on the contribution (or not) of the range of energies that are said to be renewable. Discussing the future of energy means thinking about equality in terms of just economic and social development. It is preparing the population for the challenges that lie ahead and that will soon have an impact  in contexts in which disasters and catastrophes tend to be more frequent due to climate change.

Armindo Teodósio (Téo), Thiago Silva, Andressa Nunes, Melina Gomes are Researchers-Extension Workers of the Knowledge and Innovations for Sustainability Extension Program (SABIÁS). They belong to the Center for Research in Ethics and Social Management (NUPEGS), of the Graduate Program in Administration, of the Pontifical Catholic University of Minas Gerais. The author Thiago Silva is a Visiting Researcher at the Institute of Social Sciences of the University of Lisbon and his research contemplates possibilities and risks in community-based renewable energies in Brazil. The authors would like to thank the research for funding and the approval of research grants from the Minas Gerais Research Foundation (FAPEMIG) and the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq). 

E-mail: thiago.silva@academico.ufpb.br

Notas do 2º Fórum da Habitação do projeto LOGO: Estratégias Locais de Habitação, da elaboração à implementação

Por: Caterina Di Giovanni

No dia 31 de março de 2025 teve lugar o 2º Fórum da Habitação – Estratégias Locais de Habitação: da elaboração à implementação – no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Esse evento enquadra-se nas atividades do projeto LOGO – A governança local das políticas de habitação. Uma investigação das estratégias locais de habitação (2023-2026), cujo foco principal é a dimensão local das políticas de habitação, investigando especificamente o impacto das Estratégias Locais de Habitação (ELHs) e das Cartas Municipais de Habitação (CMHs).

O 1º Fórum do projeto foi em março do ano passado e teve como tema a elaboração das ELHs na Área Metropolitana de Lisboa (AML) (vejam aqui o pré e post fórum); este ano focamo-nos sobre a implementação das ELHs na AML, com o objetivo de fazer um ponto da situação depois de um ano.

Repetimos o formato do ano passado, com uma programação tripartida em sequência: duas sessões fechadas com os técnicos camarários da Área Metropolitana de Lisboa e uma aberta ao público sob forma de mesa-redonda com peritos da habitação.

A primeira sessão do dia foi constituída por um workshop organizado segundo o modelo do chamado “world café”: os participantes foram divididos em grupos por mesa temática. Após cerca de 30 minutos de debate numa mesa, os grupos passaram a uma nova mesa, repetindo-se o processo até que cada grupo tivesse participado em todas as mesas.

As três mesas temáticas abordaram temas relacionados com as políticas locais da habitação:

– Mesa 1 (“Os atores das políticas locais”) na qual se procurava saber quais atores estão a participar, juntos com as câmaras, na implementação das ELHs e que tipo de relação se está a desenvolver entre eles (Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana – IHRU, consultorias, associações locais, juntas de freguesias, etc.);

– Mesa 2 (“O processo de implementação e o seu impacto sobre as carências habitacionais locais”) na qual se procurava perceber que tipo de desafios estão ligados ao processo de implementação e que impacto este está a ter (ou vai ter no futuro) sobre as carências habitacionais dos municípios;

– Mesa 3 (“Os recursos para uma política de habitação pós-PRR”) na qual se procurava perceber como é o que mudou (ou vai mudar) a dinâmica da política de habitação local pós-PRR.

Figura 1 – Abertura dos trabalhos. Apresentação das mesas temáticas com técnicos camarários da AML. Foto: Marco Allegra

Seguimos com a metodologia de Rose, Thorn, Buds (Fig. 2) — Rosas: resultados positivos; Espinhos: pontos críticos e Brotos: potenciais para o futuro. Os participantes responderam às perguntas colocadas pelos facilitadores e as respostas foram colocadas no quadro com post-its, colocando-os de acordo com a metodologia referida.

Figura 2 – “Rosas, Espinhos, Brotos” na mesa temática 2. Foto: Caterina Di Giovanni

Foi pedido aos participantes que dessem as suas respostas a um questionário instantâneo, dividido em três partes, com perguntas iguais ao ano passado, podendo assim refletir sobre o que mudou após um ano.

Na primeira parte, os participantes deveriam dar a sua opinião relativamente às seguintes afirmações (onde 1=discordo; 5= concordo). Após um ano, os resultados evidenciam que a ELH introduziu mais desafios de mudança e de esperança, mas a dinâmica de participação de outros atores esteve em queda.

Figura 3 – Resultados do questionário instantâneo (1ª parte) aos técnicos da AML — 1º Fórum (esquerda) e do 2º Fórum (direita)

Na segunda parte, os participantes deveriam escrever que palavras utilizariam para descrever a sua experiência em termos de ELH (uma palavra x cinco campos). Os resultados, visualizados numa nuvem de palavras, apontam para palavras centradas em reconhecimento de atributos mais positivos a respeito do ano passado.

Figura 4 – Resultados do questionário instantâneo (2ª parte) aos técnicos da AML — 1º Fórum (esquerda) e do 2º Fórum (direita)

Na terceira parte, os participantes deveriam escrever uma resposta à seguinte reflexão: “Se eu fosse responsável pelas Políticas de Habitação, a minha prioridade seria… (até 200 caracteres). Os resultados foram organizados em categorias, como evidenciados na fig. 5, e mostram ideias mais detalhadas em termos de instrumentos, princípios e ação do Estado.

Figura 5 – Resultados do questionário instantâneo (3ª parte) aos técnicos da AML — 1º Fórum (2024) e do 2º Fórum (2025)

O programa seguiu com a sessão plenária, que integrou o resumo de pontos fortes, fraquezas e oportunidades (Rosas-Espinhos-Brotos) e um debate interno sobre o processo das ELHs nos municípios da AML.

Finalmente, o Fórum abriu as portas para o público na sessão da mesa-redonda, constituída por Ana Pinho (ex-Secretária de Estado de habitação), Carlos Humberto de Carvalho (Primeiro-Secretário da AML) e Sílvia Jorge (investigadora CiTUA/IST-ID).

Figura 6 – Oradores da mesa-redonda aberta ao público. Foto: Teresa Madeira da Silva.

O que aprendemos com este Fórum?

Apesar da diversidade dos territórios da AML e do grande investimento público na habitação,[1]  o resultado      é que as carências estão a aumentar exponencialmente, pelo que as respostas poderão ser insuficientes.

Algumas breves notas evidenciadas para o processo de implementação das ELHs:

Rosas

–  Reabilitação de parque público existente (solução mais apostada) com impacto positivo na vida das pessoas;

– Melhor monitorização e gestão do parque público;

– Compromisso das Câmaras para executar o que estabelecido.

Espinhos

– Prazos continuam a ser o espinho maior, em continuação com o ano passado;

– Impasse das candidaturas dos beneficiários diretos provocou uma desacreditação do processo;

– Mercado aquecido e carências habitacionais em constante ampliação.

Brotos

– Diversificação de soluções habitacionais e de tipos de arrendamento (além do apoiado);

– Perspectivas de colaboração intermunicipal;

– Revisão das ELHs juntamente com a elaboração da CMH – questões esquecidas para resolver.

Os métodos utilizados durante este 2º Fórum, resumidos na metodologia de Rosas-Espinhos-Brotos e no questionário instantâneo, sublinham como os atores envolvidos, já poucos em fase de elaboração das ELHs, estiveram em queda na implementação, mostrando como os municípios são o verdadeiro Ator do processo. As Câmaras assinalam uma aposta na diversidade de soluções aplicadas e, no entanto, muitas carências ficaram fora nesta fase da implementação. Através das ELHs, o capital de conhecimento das Câmaras foi reforçado, enquanto os recursos humanos continuam sobrecarregados principalmente para cumprir os prazos apertados. Não obstante os muitos obstáculos observados, as respostas do questionário são mais esperançosas face ao ano passado, delineando uma aprendizagem contínua das ELHs.          

Perante os bons resultados do 2º Fórum da Habitação, a equipa LOGO está a pensar no próximo que terá lugar ainda este ano em Coimbra.

Stay tuned!

Caterina Di Giovanni é arquiteta e doutorada em Estudos Urbanos (ISCTE-IUL / FCSH NOVA). É investigadora júnior no ICS-ULisboa no âmbito do projeto LOGO.