Serviço Social Brasileiro no espaço urbano: O trabalho na perspetiva do direito a moradia

Por: Francine Helfreich

O Serviço Social brasileiro apresenta uma relação extremamente próxima com o desenvolvimento das políticas urbanas, sobretudo aquelas que se propõem a enfrentar o déficit habitacional do país, estimado em torno de seis milhões de domicílios, conforme os dados da Fundação João Pinheiro referentes ao ano de 2022. Não há dúvidas que o problema da moradia no país atinge os segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. Dentre eles, destacam-se as mulheres e a população negra, que compõem 54% da população.

Assim, a questão urbana no Brasil engloba uma complexidade de problemas que se articulam entre si. A ausência de regularização da posse da terra, o crescimento das favelas, a insuficiente e ineficaz mobilidade urbana, a falta de assistência técnica de interesse social, o crescimento das milícias policiais mediando a vida nos territórios, as guerras dos grupos civis armados, a política de segurança pública equivocada e, por fim, a negação do direito à cidade nos termos defendidos por Henri Lefebvre, são alguns exemplos que podemos citar. É justamente no conjunto dessas das expressões da questão social – termo usual da categoria profissional – que os assistentes sociais brasileiros executam seu trabalho.

Contudo, a presença desses profissionais no espaço urbano, não é recente. O Serviço Social, desde os seus primórdios, nos anos 1930, acompanhou o processo de industrialização e urbanização do país. Cabe ressaltar que o Estado brasileiro tem sido, historicamente, o maior empregador de assistentes sociais. Acrescido a esses processos mais amplos, a profissão também se modificou diante das distintas perspetivas teórica-metodológica e ética-política assumidas nos diferentes períodos.

Se elaborarmos uma linha do tempo, verificaremos que, por muitos anos, as assistentes sociais assumiram uma postura moralizadora, controladora e disciplinadora, reiterada por um viés teórico que justificava tais práticas no país. Contudo, através do diálogo com a teoria social crítica via Movimento de Reconceituação – considerado o mais importante período de reformulação da profissão no Brasil – o Serviço Social assumiu outra perspetiva de análise para os processos sociais e para si. Tais mudanças permitiram a caracterização do espaço urbano capitalista enquanto uma “arena” privilegiada de lutas de classes. Trata-se, portanto, de uma transformação que possibilitou que a profissão assumisse literalmente um compromisso ético-político com a classe trabalhadora explicitado no seu Código de Ética Profissional de 1993.

Afinal, o que faz a profissão no espaço urbano? Quais são suas principais atribuições nas políticas urbanas? Nessa área, a categoria profissional, juntamente com o Conselho Federal de Serviço Social, sistematizou as seguintes competências profissionais das/dos assistentes sociais: atividades articuladas às ações de caráter educativo, organizativo e de mobilização popular; supervisão, formação, planejamento, gestão e coordenação de políticas e projetos e, por último, ações de assessoria política.

Figura 1. Nova Holanda (Complexo da Maré/RJ). Autor: Douglas Lopes.

Se atualmente temos uma profissão comprometida com valores emancipatórios, simultaneamente há uma contradição que a acompanha. O seu maior empregador, o Estado, no contexto do neoliberalismo transformou-se no maior violador de direitos ao não produzir políticas públicas de qualidade que efetivem os direitos sociais. Isso nos coloca diante de uma questão: como atuar na perspetiva de garantia de direitos se o maior violador é quem emprega? Essa indagação fundamentou a realização de uma pesquisa acerca das produções teóricas dos assistentes sociais sobre este tema, ao longo dos últimos dez anos, nos dois principais fóruns de debates da categoria, o Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais e o Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social. O material levantado reuniu textos que compõem os Anais de 9 eventos. Destes, 161 abordaram a temática urbana, o que configurou o crescimento de produções sobre a temática em destaque no período “lulopetista”. A maioria das produções foram da Região Sudeste, onde se concentra cerca de 40% da categoria profissional em exercício. Nela também se encontram a maioria dos cursos de Serviço Social do país.

O estudo também revelou que nesse amplo leque de ações que envolvem as políticas urbanas há uma concentração na atuação no campo da habitação. Consideramos que este crescimento possui relação com a implementação do Programa Minha Casa, Minha Vida nos governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011, 2023-) e Dilma Rousseff (2011-2016) e com o “Programa de Aceleração do Crescimento”, pois ambos traziam em suas normativas a exigência do trabalho técnico social.

Figura 2. Salsa (Complexo da Maré/RJ). Autor: Douglas Lopes.

Das produções analisadas, as ações mais desenvolvidas pelos assistentes sociais assemelham-se àquelas que dialogam com as atribuições estabelecidas pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). Entretanto, os desafios são grandes . O agravamento da pobreza e das desigualdades nos últimos anos, associados ao permanente corte dos investimentos sociais, têm fragilizado as políticas públicas e tornado precárias as condições de trabalho dos assistentes sociais. Os profissionais têm se defrontado com a ausência de infraestruturas adequada, insuficiência de recursos humanos para atendimento às demandas, além das tutelas de lideranças políticas locais e de grupos armados que atuam no cotidiano dos territórios.

Por fim, percebemos um investimento significativo na apropriação teórica sobre a questão urbana. Desse modo, as formulações de autores estrangeiros como Henri Lefebvre e David Harvey aparecem, respetivamente, em 30 e 20 estudos. Entre os intelectuais brasileiros que versam sobre a temática, a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato registrou 20 citações e o geógrafo Milton Santos foi citado em 11 produções.

Esses dados ainda sob análise reiteram a importância da inserção das políticas urbanas no tocante à inserção dos assistentes sociais. A ampliação da produção teórica da categoria sobre o “urbano” demonstra que este campo de estudos apresenta um notório crescimento entre os profissionais.


Francine Helfreich é assistente social e doutora em Serviço Social. Professora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional – UFF/ Brasil, com experiência na área de trabalho profissional, educação, questão urbana e favelas. Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE) e o Núcleo de Projetos Urbanos e Habitacionais (NEPHU).

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