Da esquizofrenia das políticas ambientais em Portugal. Conhecimento de base científica no apoio à tomada de decisão – Precisa-se

Por: Rosário Oliveira

Em contexto de instabilidade generalizada à escala global, as políticas ambientais ganharam um estatuto quase esquizofrénico, tornando-se difícil, senão impossível, prever a trajetória que irão prosseguir para evitar a hecatombe climática e de perda de biodiversidade, com consequências trágicas para a sobrevivência dos ecossistemas e da sociedade do século XXI.

Não se trata de um discurso catastrofista, senão do reconhecimento factual acerca do descomprometimento e desresponsabilização dos países relativamente aos Acordos internacionais para inverter a tendência de aquecimento global e de perda massiva da biodiversidade.

No momento em que a Organização das Nações Unidas (ONU) promove a 28ª edição da Conferência das Partes – COP 28, sobre mudanças climáticas, fica claro o jogo de forças das grandes potências mundiais entre apostar na economia do carbono ou na sua descarbonização.

Por outro lado, a Convenção sobre a Diversidade Biológica acordou na COP 15, em dezembro de 2022, o Quadro Mundial para a Biodiversidade, que define metas mundiais orientadas para a ação e exige medidas urgentes durante a década de 2030. Pretende assegurar que todas as zonas sejam objeto de uma planificação espacial e/ou processos de gestão eficazes que sejam participativos, integrados, que incluam a biodiversidade e que tenham em conta as alterações do uso do solo e do mar.

Na Europa, perante um ambicioso Pacto Ecológico Europeu (Green Deal), que define a meta de neutralidade carbónica para 2050, a União Europeia (UE) tem multiplicado esforços para estabelecer as bases legais e regulamentares deste “caminho verde”, assumindo-se como anova estratégia de crescimento da UE, que será a força motriz da nossa competitividade e conduzirá a uma transformação progressiva mas profunda das nossas economias, que, por sua vez, terão uma forte influência nos padrões comerciais”.

Por seu turno, a Lei do Restauro da Natureza, uma proposta da Comissão Europeia, de junho de 2022, tem em vista a recuperação de longo prazo dos ecossistemas degradados. Esta é a primeira vez que uma legislação europeia prevê medidas obrigatórias para os Estados-Membros sobre o restauro de ecossistemas (além da conservação). Segundo dados da União Europeia, mais de 80% dos habitats europeus estão em mau estado de conservação. Apesar de todas as controvérsias, o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho da União Europeia chegaram, em novembro de 2023, a acordo relativamente ao essencial do seu conteúdo, tendo agora que ser aprovado pelos Estados Membros para a votação final pela Comissão de Ambiente do Parlamento Europeu.

Figura 1. Parque Natural da Serra da Estrela

E em Portugal?

Uma auditoria de 2022 do Tribunal de Contas identifica que “Portugal dispõe de áreas protegidas que concretizam algumas das políticas relativas à conservação da natureza e da biodiversidade”, mas alerta relativamente à falta de informação sobre estes ecossistemas que permita avaliar eficazmente a sua conservação. Dados da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) relativos aos habitats da Rede Natura 2020, dão conta de um predomínio de habitats em estado de conservação “inadequado”, já evidenciado em 2019 pela condenação de Portugal pelo Tribunal Europeu relativamente ao incumprimento da Diretiva Habitats.

Se a situação já era preocupante, a gota de água parece ter sido a destruição de habitats classificados para a construção de um edifício em cima de uma lagoa temporária e o aterro de matos de urzais-tojos na Zona Industrial e logística de Sines, no Sudoeste Alentejano, em total desrespeito pela Avaliação de Impacte Ambiental na fase 1 de instalação do projeto.

Este tipo de procedimentos – sacrifício de áreas com um estatuto de conservação em detrimento da instalação de infraestruturas, equipamentos ou outros usos incompatíveis com a conservação da natureza e da biodiversidade –, não sendo inéditos, tornaram-se públicos, conduzindo à queda de um governo de maioria absoluta e à instabilidade política que se vive em Portugal desde o início de novembro de 2023.

A União Europeia definiu ambiciosos objetivos na Estratégia Europeia de Biodiversidade 2030 para reverter a perda da biodiversidade, restaurar ecossistemas naturais degradados e estabelecer de modo coerente uma Rede Transeuropeia de Conservação da Natureza. Em 2030, pelo menos 30% da superfície terrestre e marinha de cada Estado-Membro deverá estar legalmente protegida e consolidada, dos quais 10% deverá ser estritamente protegida.

O facto é que estamos a retroceder relativamente à obrigação de restauro ecológico em 20% dos ecossistemas europeus e nacionais até 2030 e, novamente, a polarizar posições entre os defensores da Lei do Restauro da Natureza e os defensores de modelos insustentáveis de atuação sobre o ambiente, nomeadamente o lobby da agricultura intensiva, pondo em questão a soberania alimentar e a transição energética na Europa.

Nesta controvérsia, a academia tem um papel fundamental para que os diversos argumentos possam ser debatidos e fundamentados numa base científica, o que tem originado tomadas de posição neste sentido por parte de diversos investigadores.

Também a nível nacional surgiu uma iniciativa inédita para debater estas questões e apoiar a tomada de decisão no âmbito das políticas públicas de ambiente, em particular da implementação da Estratégia para a Conservação da Biodiversidade 2030. O Think Tank Natura Connect PT foi apresentado ao público a 21 de novembro de 2023, em Évora, com o objetivo de diagnosticar os principais obstáculos políticos, socioeconómicos, técnicos e institucionais, promovendo simultaneamente as transformações imprescindíveis para atingir os objetivos propostos pela União Europeia. O Think Tank congrega altos quadros da administração pública, do sector empresarial, do meio académico e de entidades não governamentais, sendo o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, uma das entidades parceiras. A liderança desta iniciativa está a cargo de Miguel Bastos Araújo, coordenador da Cátedra Rui Nabeiro – Biodiversidade, na Universidade de Évora, e enquadra-se no contexto do projeto europeu NaturaConnect.

Os Estados-Membros são instados a adotar uma abordagem rápida e coordenada, envolvendo sinergias entre a administração pública, o tecido empresarial, as entidades académicas e a sociedade civil, com o intuito de potenciar o investimento em capital natural. Este esforço conjunto deve também visar o reforço da integridade das áreas protegidas e uma gestão eficiente da biodiversidade e dos recursos naturais. A instauração do Think Tank Natura Connect PT constitui um passo estratégico para sondar as necessidades específicas de Portugal, promovendo um diálogo multissetorial e inclusivo que envolve agentes responsáveis pelo ordenamento do território, conservação da natureza e gestão do património natural.

Os resultados desta iniciativa representam uma contribuição para a integração dos objetivos de preservação da biodiversidade e conectividade ecológica nas políticas setoriais e nos programas nacionais vigentes. Destacam-se, por exemplo, o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) e outros mecanismos de gestão do território. Paralelamente, as sessões de capacitação constituirão uma plataforma para disseminar o saber científico mais recente e as ferramentas técnicas avançadas desenvolvidas noutros países europeus.

Figura 2. Reserva Natural do Estuário do Sado.

Rosário Oliveira é arquiteta paisagista, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no Grupo de Investigação ‘Ambiente, Território e Sociedade’. A sua investigação procura responder aos desafios societais, nomeadamente a emergência climática, o planeamento alimentar e a perda de biodiversidade, através de processos transformativos e soluções de base natural que integrem a ciência, as políticas públicas e a ação, com impacto positivo no bem-estar humano, na economia, na qualidade ambiental e da paisagem.

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