A ideologia neoliberal e o urbano: o surgimento dos bairros privados no Brasil

Por: Lara Caldas

“Nasce a Orla que Porto Alegre Merece” – é o slogan que anuncia o mais recente empreendimento imobiliário de Porto Alegre, cidade no Sul do Brasil. O empreendimento em questão leva o nome de Golden Lake e, segundo seus realizadores, é o primeiro bairro privado da cidade. Mas o que é um bairro privado?

Os bairros privados começam a despontar como forma de empreendimento imobiliário no Brasil. Até o momento, há poucos exemplos, nenhum plenamente consolidado, e todos parecem ter surgido após 2018, se tratando então de um fenômeno bastante recente. Na prática, os bairros privados nada mais são do que um tipo de condomínio fechado, mas com uma ênfase diferente. Tradicionalmente, os condomínios fechados no Brasil se localizam em regiões relativamente afastadas dos centros urbanos consolidados e sua principal característica são os altos muros e controle rigoroso de entrada e saída de pessoas. De fato, os condomínios fechados (CF) se popularizam no Brasil a partir da década de 1980, fortemente ancorados no discurso da “segurança de morar”, contra um então emergente imaginário de medo urbano.

Já os bairros privados (BP) estão surgindo em áreas urbanas consolidadas e assimilam uma crítica recorrente aos CF: seu relativo isolamento de serviços básicos. A maioria dos CF brasileiros está localizada em regiões relativamente afastadas, justamente pelo seu imaginário da “fuga do caos urbano”, semelhante ao discurso observado nos subúrbios estadunidenses. Essa forma de organização espacial gera, obviamente, enorme dependência dos carros particulares. Em tempos recentes, contudo, o paradigma do carro particular como principal forma de transporte vem sendo questionada, tanto do ponto de vista da “sustentabilidade”, quanto da praticidade, uma vez que os engarrafamentos longos se tornaram parte do cotidiano de cidades grandes e médias no Brasil. Atentos à hype do momento, os desenvolvedores dos bairros privados apostam nas tendências mais recentes do urbanismo contemporâneo: a cidade compacta, a cidade de 15 minutos, a cidade inteligente, a cidade saudável… e, porque não, a cidade privada, de forma que os elementos que mais diferenciam um bairro privado de um CF são sua multifuncionalidade, sua forma de governança e sua escala.

O BP se propõe como a “reimaginação moderna” de um “bairro tradicional” – aquele onde era (era?) possível resolver as questões básicas do cotidiano a pé. O imaginário do “bairro tradicional” evoca ainda um certo estilo de vida, de configuração familiar e ideais de segurança. De forma que o já citado Golden Lake anuncia em suas luxuosas brochuras uma ampla gama de serviços: áreas de esporte, lazer, trabalho, restaurantes, supermercado, serviços variados desde spa, cuidado com crianças e até acesso particular controlado a um hospital, clínicas e um shopping center. Os slogans reforçam a ideia da busca de autonomia intramuros: “tudo em um só lugar”.

Figura 1. Protestos de 2016 contra a privatização da orla de Porto Alegre, onde se encontra o Golden Lake. Foto: Ramiro Furquim/Jornal Já

Outra questão que destaca o novo BP de Porto Alegre é a sua relação profunda com a financeirização. Embora os CF não estejam fora deste fenômeno global, o Golden Lake dá um passo além. O bairro está sendo desenvolvido pela property company Multiplan. Property Companies são empresas de capital aberto, com acesso à dívida pública e com uma estrutura organizacional que privilegia os grandes investidores, e acumulam ativos imobiliários bilionários. Boa parte do que essas empresas produzem, portanto, é antes de tudo um investimento financeiro, que segundo a tendência atual do mercado de altíssimo padrão, tem boas chances de permanecer desocupado, servindo uma função especulativa. Assim, a configuração dos BP pode indicar que a demanda suprida não é primariamente a de “moradia segura”, mas uma de “reserva de riqueza”, em um desfiguramento ainda maior do valor de uso que se espera de imóveis residenciais.

A multifuncionalidade e o modelo de implementação dos BP sugerem ainda uma outra forma de governança, pautada pelo ideal de autonomia privatista pertencente ao imaginário neoliberal. Neoliberalismo é um termo em disputa, e aqui nos limitaremos a defini-lo como a racionalidade e governabilidade predominantes do capitalismo contemporâneo. O neoliberalismo se funda na afirmação da superioridade de relações sociais privadas contratuais e espontâneas dentro do “livre mercado”, sobre as relações tidas como coletivistas, associadas a ideais intervencionistas de Estado. Longe da defesa de laissez-faire, entretanto, o neoliberalismo imagina um Estado forte, porém cujas funções se restringem primariamente à produção do mercado e manutenção da ordem. A ordem, nesse caso, é o controle policial, o uso da força e a garantia de um sistema social que sustente a reprodução do capital.

Os BP parecem encapsular precisamente essa lógica. Enquanto se inserem em centros urbanos providos de serviços públicos essenciais e custosos – além de providos com a necessária “mão de obra” – há um desejo de diferenciação em relação a uma ideia comum de cidade. Para além de um segregacionismo pautado no discurso da segurança, a ideia parece ser a de superar o que é público e comum, significantes esses associados à ineficiência, à uma cidade perigosa, e o lugar de um outro indesejável. Isso só é possível pela privatização total, ideal que vai além do “criar enclaves exclusivos”. O slogan já diz: este é o bairro que Porto Alegre – a cidade inteira – merece, e não “você”, o indivíduo e potencial comprador ou algum grupo particular. O discurso não é criar espaços exclusivos para poucos (ainda que esses espaços o sejam, de fato) – mas convencer que só pela privatização total se pode alcançar os objetivos de uma “boa sociedade”. É o que indica a escolha de promover esses empreendimentos como “bairros privados” e não mais “condomínios”. A escolha de palavras não é trivial e denota a aspiração a outra forma de viver e fazer o urbano, centrada em relações privadas, hierárquicas e segregacionistas.

Assim, caso os BP se normalizem como uma “solução possível” para as cidades no Brasil, caberia perguntar: quais as possíveis consequências da difusão desse imaginário urbano privatista para as lutas por democratização e direito à cidade?


Lara Caldas é doutoranda em Ciência Política (Universidade de Brasília, UnB), Mestre em História da Arquitetura e Urbanismo (University of Groningen), e graduada em Arquitetura e Urbanismo (UnB). Seu campo de pesquisa é democracia e desigualdades urbanas na América Latina.

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