Por: Rosário Oliveira e João Mourato
A biodiversidade é fundamental, pois dela depende a regulação de processos essenciais à vida como a composição química da atmosfera, do solo, da água, e a capacidade de produção agrícola e florestal. A sua perda afeta inevitavelmente a espécie humana, pelo que a sua conservação é crucial também para a nossa sobrevivência.
Contudo, as estratégias de conservação internacionais, europeias e nacionais não têm sido capazes de travar e inverter a perda alarmante de biodiversidade nas últimas décadas, sendo, assim, necessário ir além das tradicionais medidas de conservação (ex. gestão de áreas protegidas, proteção de espécies ameaçadas, controlo de espécies invasoras).
Esta é a missão do estudo ‘Biodiversidade 2030 – Nova Agenda para a Conservação em Contexto de Alterações Climáticas’, estruturado em torno de 5 binómios: biodiversidade-clima, -território, -águas interiores e costeiras, -oceano, e -pessoas (Figura 1). Estes binómios representam, na realidade, uma complexa teia de interações: a par das dimensões territoriais (terra, rios, albufeiras, mar), confluem dimensões temporais (alterações do clima e de dinâmicas socioeconómicas), mas também componentes jurídicas e administrativas da política de conservação, outras políticas sectoriais, e os quadros de financiamento público e privado atuais e futuros.

A partir de uma análise multidisciplinar e de um diagnóstico de tendências e vulnerabilidades, propõe-se uma agenda inovadora para alavancar técnica, administrativa e financeiramente a política de conservação e restauro da biodiversidade em Portugal continental e marinho, no contexto particularmente desafiante das alterações climáticas (Fig. 2).
É hoje consensual que a designação de áreas de conservação ao abrigo da legislação nacional e europeia é insuficiente para reverter a perda de biodiversidade e assegurar uma eficaz fixação de carbono por parte dos ecossistemas naturais, como ficou demonstrado pelo Sexto Relatório do IPCC de 2022. É, assim, necessário apostar, para além da ampliação da rede de áreas protegidas, numa gestão ativa e adaptativa, e no restauro ecológico de populações e ecossistemas. Tal exige um reforço de financiamento, melhoria da gestão e governança e forte convergência intersectorial no sentido da sustentabilidade ambiental das atividades produtivas, como proposto no âmbito do Pacto Ecológico Europeu, Conservação Europeia da Biodiversidade e na recente proposta de lei para o restauro ecológico na Europa.
Como resposta a estes indicadores alarmantes, o estudo mobiliza e integra, pela primeira vez em Portugal, um grande volume de dados geográficos de biodiversidade em terra, águas interiores e no mar, com vista a gerar cenários que possam suportar o processo de decisão política. Proporciona ainda uma análise dos padrões e tendências da biodiversidade terrestre e marinha, tendo em conta as mudanças climáticas projetadas para o país, e enquadra os mesmos numa análise de políticas públicas e legislação.

Tendo por base os objetivos da Estratégia Europeia de Biodiversidade, foram identificadas 9 Reformas, que deverão ser traduzidas em políticas, estratégias e roteiros de ação até 2030.
Objetivo 1: Reforçar a coerência das áreas protegidas
Reforma 1 – Criação da Estrutura de Adaptação Climática da Biodiversidade
Reforma 2 – Reforço do nível de proteção das áreas classificadas
Objetivo 2: Gerir com eficácia a biodiversidade protegida
Reforma 3 – Definição de planos de gestão ativa e adaptativa de gestão de espaços classificados
Reforma 4 – Aprofundamento da cogestão das áreas classificadas
Objetivo 3: Restaurar populações e ecossistemas naturais degradados
Reforma 5 – Restauro dos ecossistemas de águas interiores
Reforma 6 – Restauro dos ecossistemas marinhos
Objetivo 4: Financiamento para a biodiversidade
Reforma 7 – Implementação do princípio do utilizador-pagador nas áreas protegidas portuguesas
Reforma 8 – Criação de mercados de créditos de biodiversidade
Reforma 9 – Introdução de mecanismos de fiscalidade verde
O ICS-ULisboa coordenou o binómio Biodiversidade e Território onde, entre outros contributos, elaborou a avaliação das políticas públicas, visando aferir a coerência horizontal, vertical e interna de diferentes quadros de política nacional relativamente à Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ENCNB).
Desta análise, torna-se evidente que é na política climática que há um maior reconhecimento da biodiversidade e dos objetivos da ENCNB 2030, via as linhas de ação da ENAAC2020 (Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas)/P3AC (Programa de Ação de Adaptação às Alterações Climáticas), sendo amplamente referenciada no PNEC2030 (Plano Nacional Energia e Clima 2030), e explicitamente associada a algumas das propostas da RNC2050 (Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050), nomeadamente quanto ao impacto do sector agroflorestal. Há uma clara articulação intersectorial, sendo referida explicitamente no P3AC a expansão da conectividade ecológica e a necessidade de “fomentar a criação de refúgios e corredores ecológicos para espécies vulneráveis da fauna”. O PNEC2030 sublinha a necessidade de “Continuar a apoiar e desenvolver Programas de Remuneração de Serviços de Ecossistemas em Espaços Rurais”. Contudo, a tradução prática desta integração, quer ao nível do desenho de instrumentos, quer ao nível da alteração das soluções de governança territorial, é ainda embrionária.
Cumulativamente, face aos objetivos da ENCNB 2030, a política de ordenamento do território e política florestal pautam-se por uma gestão passiva (ou de suporte, na terminologia do Decreto-Lei n.º 142/2008) e numa fraca articulação intersectorial. A política agrícola é aquela que parece gerar menos conflitos na relação com a ENCNB 2030. Em todas estas, é no domínio da conectividade ecológica que se encontram as maiores fragilidades, ainda que estejam previstos mecanismos jurídicos para a definição de estruturas de âmbito regional, suportados pelos princípios de continuidade e conectividade da Rede Fundamental de Conservação da Natureza (RFCN), razão pela qual se propõe uma Estrutura de Adaptação Climática da Biodiversidade, a par de um novo modelo de cogestão, como exemplos de ações necessárias ao reforço da gestão ativa e adaptativa da biodiversidade no quadro das alterações climáticas.
Contudo, o atual contexto global de forte instabilidade geopolítica e a já recorrente secundarização da conservação da biodiversidade e do ambiente em contextos de crise socioeconómica são um alerta sério para os desafios que este recurso enfrenta e para a fragilidade das condições planetárias necessárias à perpetuação da espécie Homo sapiens sapiens, tal como a conhecemos hoje.
Rosário Oliveira, é Arquiteta Paisagista, com doutoramento europeu em Artes e Técnicas da Paisagem e investigadora auxiliar do ICS-ULisboa, no SHIFT – Ambiente, Território e Sociedade, e docente no Doutoramento em Ciências da Sustentabilidade. Coordenou a componente Biodiversidade e Território do estudo “Biodiversidade 2030 – Nova Agenda para a Conservação em Contexto de Alterações Climáticas”. A sua investigação procura responder aos desafios societais, nomeadamente a emergência climática, o planeamento alimentar e a perda de biodiversidade, através de processos transformativos e soluções baseadas na natureza que integrem a ciência, as políticas públicas e a ação, com impacto positivo no bem-estar humano, na economia, na qualidade ambiental e da paisagem. rosario.oliveira@ics.ulisboa.pt
João Mourato é investigador auxiliar e docente no ICS-ULisboa. Arquiteto (FA-UTLisboa) e PhD em Town Planning (Bartlett School-UCL), o seu trabalho centra-se na intersecção entre as áreas do ordenamento do território e alterações climáticas. Investiga, em particular, a dinâmica de aprendizagem e adaptação institucional e governança do conhecimento face aos desafios da transição socioecológica e sociotécnica para a sustentabilidade. Neste contexto, é atualmente consultor da Iniciativa Nacional Cidades Circulares – InC2, da Direção Geral do Território – Ministério do Ambiente e Ação Climática. joao.mourato@ics.ulisboa.pt