A crescente importância do vetor ambiental para a segurança e defesa nacionais em Portugal

Por João Estevens*

Faz sentido pensar o ambiente do ponto de vista da segurança nacional? Qual tem sido o tratamento das questões ambientais na narrativa securitária? Estas duas questões dão o mote para este texto e continuidade a investigações recentes desenvolvidas no ICS-ULisboa.

O fim da Guerra Fria e da ordem bipolar trouxe uma reconfiguração na arquitetura e dinâmicas institucionais à escala global com reflexo em matérias de segurança. A segurança é um conceito polissémico, na medida em que comporta diferentes entendimentos: segurança global, segurança cooperativa, segurança nacional, segurança interna, segurança humana, segurança individual, etc. As alterações climáticas, a competição por recursos naturais, ou a poluição representam, de forma direta e indireta, preocupações para a segurança dos indivíduos e dos países. As consequências da degradação ambiental ultrapassam as fronteiras nacionais e apresentam interdependências com outros vetores relevantes para a segurança como, por exemplo, o socioeconómico, o político, e o migratório. A gravidade dos riscos associados às alterações climáticas – subida da temperatura e do nível do mar, disponibilidade de água potável, equilíbrio dos ecossistemas, produção alimentar, saúde individual, ou crescimento económico, entre outros – exigem uma adaptação comportamental coletiva e uma nova atuação institucional. Se, no caso da atual pandemia, foi clara a necessidade de uma maior coordenação internacional, o mesmo pode ser afirmado em relação à questão climática, onde as respostas da comunidade internacional são há décadas globalmente insuficientes.

Nova Orleães depois após a passagem do furacão Katrina. Fonte: Pixabay

Sociedade de risco e a via da securitização

A função do garante da segurança está na génese do Estado, assegurando a proteção do território e dos seus cidadãos. A segurança nacional pode ser entendida como um instrumento do poder do Estado, sendo determinada pela abstração do interesse nacional. Esse interesse varia no tempo, assumindo-se um caráter dinâmico da segurança nacional. Até ao final da Guerra Fria, a segurança nacional foi maioritariamente aferida segundo premissas político-militares. No entanto, os anos noventa trouxeram um reconhecimento de novos desafios globais e a incapacidade de gestão do seu risco por via da tradicional abordagem político-militar. Aquilo que viria a ser designado por Ulrich Beck como a sociedade de risco remete para a identificação e controlo de novos riscos em diversos domínios societais, evidenciando uma complexificação das relações e das interdependências transnacionais entre problemas sociais e atores estatais e não estatais.

O reconhecimento de um ambiente internacional em mudança permitiu que a própria segurança nacional se ajustasse e dialogasse com princípios da segurança humana (conceito que articula segurança, desenvolvimento socioeconómico e direitos humanos), sendo um conceito fluido e em alargamento, tanto nas suas narrativas como nas práticas: atuação operacional. A visão tradicionalista de uma segurança centrada no Estado, na sua soberania e na integridade territorial, revelou-se incapaz de fazer face aos desafios que surgiram nas últimas décadas. Os riscos e ameaças mais impactantes – riscos ambientais, alimentares, energéticos, de saúde pública, ou ameaças como o terrorismo global, o cibercrime e o crime organizado – apresentam uma dimensão transnacional que não permite iniciar processos de securitização limitados às fronteiras nacionais. Aquilo que durante séculos foi percecionado de forma independente, a segurança interna e a segurança externa, não tem lugar no século XXI, onde a segurança é claramente transnacional e cooperativa, implicando a progressiva externalização da segurança interna.

O conceito de securitização, que ganha destaque na Escola de Copenhaga, valoriza particularmente a dimensão narrativa da segurança, apresentando-se esta enquanto uma construção político-social que reflete práticas históricas, bem como o pensamento e ideário das elites com acesso ao poder. Estas elites – políticos, militares, especialistas – definem quais os principais riscos e ameaças existentes num determinado momento para diferentes níveis: local, nacional, global. Posteriormente, procedem à sua validação junto da comunidade política para, subsequentemente, ativarem os planos de ação operacional com vista à mitigação dos seus impactos ou eliminação das ameaças.

Fonte: Governo de Portugal, CEDN, 2013. [captura de ecrã do documento]

A narrativa da segurança ambiental no CEDN

Em democracia, a segurança nacional é um objetivo político permanente, que exige transparência junto dos cidadãos. O CEDN (Conceito Estratégico de Defesa Nacional) é, no fundo, uma estratégia de segurança nacional, ainda que a sua designação permaneça demasiado próxima da esfera militar. A defesa nacional apresenta-se enquanto elemento da segurança nacional, sendo esta claramente mais ampla e centrada nas atuais necessidades do Estado. O CEDN deriva da Lei de Defesa Nacional, daí a sua designação, evidenciando que este desenho legal encontrado nos princípios da consolidação democrática está hoje algo desajustado do modo como um Estado avalia as questões da defesa e segurança nacionais. Como qualquer estratégia, o CEDN procura definir objetivos, articulando os meios e uma forma para os alcançar. Não é um documento de ação estratégica e operacional, mas sim um instrumento que aponta as linhas gerais de ação, escolhendo os valores e os princípios que as guiarão. O seu interesse para este texto deriva da forma como se constitui enquanto um elemento fundamental da narrativa securitária em Portugal.

A presença do vetor ambiental nos diferentes CEDN tem vindo a expandir-se, o que reflete uma maior preocupação com as dinâmicas ambientais e, simultaneamente, um alargamento das redes de discussão e preparação deste documento para além das esferas militares. O primeiro documento, de 1985, não apresenta qualquer enquadramento dos problemas ambientais. Em 1994, o novo documento inicia a formulação da relação entre o ambiente e a segurança, refletindo as discussões do pós-Guerra Fria e mencionado os ‘atentados ecológicos’ aquando da caracterização do ambiente internacional, que encerravam riscos cada vez maiores e aconteciam com maior frequência. No plano nacional, o ambiente e ordenamento do território são pela primeira vez identificados como áreas de interesse, com vista a encontrar respostas que garantissem a eficácia da proteção civil no território e o combate às ‘agressões ambientais’. Considerava, ainda, a disponibilidade das Forças Armadas para acolherem propostas de colaboração na preservação do meio ambiente no contexto das suas atividades.

O primeiro CEDN deste milénio, de 2003, é marcado pelo 11 de setembro, mas apresenta um enquadramento internacional, onde a ‘desregulação ambiental e ecológica e da gestão dos recursos naturais, nomeadamente os hídricos e os energéticos’ pode representar um foco de conflitualidade. Ao nível interno, assume-se a necessidade de melhorar a capacidade de resposta ‘face aos crescentes atentados ao nosso ecossistema, incluindo a poluição marítima, a utilização abusiva dos recursos marinhos nas águas sob a nossa responsabilidade e a destruição florestal’. Adicionalmente, no âmbito da atuação das Forças Armadas, assinala-se a sua disponibilidade para realizar outras missões no que concerne a ‘pesquisa dos recursos naturais e investigação nos domínios da geografia, cartografia, hidrografia, oceanografia e ambiente marinho (…), contribuir para a proteção ambiental, defesa do património natural e prevenção dos incêndios’.

A última revisão aconteceu em 2013 e identifica a ‘disputa por recursos naturais escassos, como sejam os hidrocarbonetos, minerais e água’ e os ‘desastres naturais e a mudança climática’ como dois riscos de segurança global relevantes. Os riscos ambientais são também destacados enquanto riscos para a segurança nacional, designadamente ‘a degradação e escassez da água potável, a perda de terras aráveis, a diminuição da produção de alimentos e o aumento da frequência de catástrofes ambientais, podem levar a migrações em massa e a enormes prejuízos económicos’. A competição por recursos naturais escassos volta a ser mencionada e a necessidade de tomar medidas com caráter preventivo também é considerada, com especial destaque para a mitigação dos impactos causados pelas alterações climáticas (em particular nas zonas marítimas costeiras), sismos, ondas de calor e de frio (com potenciais efeitos na morbilidade e mortalidade da população), atentados aos ecossistemas terrestre e marítimo, designadamente a poluição, a utilização abusiva de recursos marinhos e os incêndios florestais. A questão da segurança ambiental é, ainda, articulada com o ordenamento do território e com uma visão estratégica de investimento em recursos hídricos. Por último, a proteção do ambiente, a defesa do património natural e a prevenção de incêndios, a pesquisa dos recursos naturais e a investigação nos domínios da geografia, cartografia, hidrografia, oceanografia e ambiente marinho continuam a ser entendidas como missões de interesse público para as Forças Armadas.

Poluição atmosférica. Fonte: Pixabay

Em síntese, é evidente a expansão do vetor ambiental na narrativa da segurança nacional desenvolvida no CEDN, ganhando espaço e articulação a cada revisão. É inegável que as questões ambientais são hoje, discursivamente, objeto de segurança e defesa nacionais em Portugal. A grande questão é saber se a transformação dos problemas ambientais em questões de segurança permite que se atinja uma melhor governança ambiental nacional e globalmente? Apesar de a cooperação entre Estados permanecer difusa, a via securitária pode trazer um reforço de meios e novos enquadramentos cooperativos transnacionais. A relevância deste texto prende-se com a próxima revisão do CEDN, cujos trabalhos serão em breve iniciados e terão o horizonte temporal do final da década/início da próxima. As publicações recentes no âmbito dos estudos de segurança mostram que o vetor ambiental continuará a ser um foco da segurança nacional dos Estados nos próximos tempos. Antecipa-se, assim, uma maior relevância das questões ambientais no próximo documento, tanto pelos seus impactos diretos como pelos indiretos. A segurança ambiental demonstra com clareza o modo como as dinâmicas da segurança são complexas, interdependentes e multidimensionais.

* João Estevens é Doutorando em Global Studies (Universidade Nova de Lisboa). Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais – Globalização e Ambiente. Licenciado em Economia e em Ciência Política e Relações Internacionais. Bolseiro de investigação do ICS-ULisboa no projeto H2020 CONCISE – Papel da comunicação na perceção e crenças dos cidadãos europeus sobre ciência.
joao.estevens@ics.ulisboa.pt

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