Por Luiz Carlos de Brito Lourenço
No âmbito do “Seminário Internacional sobre Ambiente e Sociedade: Desafios atuais e trajetórias de mudança”, realizado nos dias 2 e 3 de Março no ICS da Universidade de Lisboa, quis a organização da Associação Portuguesa de Sociologia abrir espaço para um painel sobre a “Governança dos Recursos Hídricos no Contexto Brasileiro”. As comunicações selecionadas partiram de três projetos de investigação de doutoramento ainda em andamento. Foram seguidas de uma síntese deste autor sobre os riscos que pairam sobre Água, Alimento e Energia, três vértices que conformam um espaço de análise de eventos que formam faces interligadas, inacabadas num infinito “poliedro de inteligibilidade” de Michel Foucault. (“Mesa redonda de 20 de Maio de 1978” in “Estratégia, Poder-Saber”, Forense, 2a ed., 2006, pág. 340) .

Duas apresentações trataram de estudos de casos em Santa Catarina, o menor estado da Região Sul do Brasil. O doutorando Felipe A. H. Damaso de Oliveira descreveu a experiência do Comitê de Gerenciamento Bacia Hidrográfica do Rio Itapocu, um dos 17 existentes no estado. Com uma extensão de 3 160 km2, abrange cerca de 1,4 milhão de residentes distribuídos entre Joinville e Blumenau. Como um “parlamento das águas”, esse colégio deliberativo arbitra conflitos e aprova planos onde os usuários têm 40% dos votos, os munícipes têm 40% e governos estadual e federal 20%. Apesar da aproximação de interesses, ressente-se de autonomia orçamentária que poderia ter, por exemplo, na forma de uma autoridade para atuar em cobrança e outorga de serviços.
O doutorando Diego Fiel dos Santos (UFJF) abordou a governança sob a perspectiva da prática democrática na gestão de recursos comuns. Trata-se de ação coordenada da sociedade civil contrária à construção de um emissário submarino (sistema de disposição oceânica de águas residuais tratadas) no sul da ilha de Santa Catarina, em Florianópolis, uma população de 500,9 mil indivíduos dispersa numa área de 600 km2 com um índice de saneamento ‘adequado’ de 87% (IBGE, 2019). A suspensão do projeto deveu-se a ações de obstrução legal por uma associação de moradores que influenciou decisões da companhia estadual de saneamento e prefeitura para preservação ambiental.
A doutoranda Rosa Maria O. M. Mancini (USP) estendeu o debate à dimensão nacional ao examinar se as diretrizes do Comitê Nacional de Recursos Hídricos (período 1998/2018) permitiram validar uma esperada articulação com outras políticas setoriais à luz de duas perspectivas teóricas: (i) a gestão integrada da água, solo e recursos correlacionados, adotada pela rede “Global Water Partnership” e (ii), a gestão a partir dos ecossistemas, rios e aquíferos, princípios da Fundação Nova Cultura da Água (fundada em Saragoça, em 1998). Observou pautas limitadas, insuficiência de instrumentos de gestão e a inexistência do ordenamento do território no país. A partir do conceito de trajetória hidráulica de Tony Allan, a atual era de incerteza climática recomenda a governança democrática com engajamento, transparência e responsabilização dos agentes em projetos com a perspectiva ambiental e empresarial “de modo explícito e não reativo”.
Diante dessas três experiências, observou este autor as seguintes conclusões do painel: (a) as soluções de dimensão regional tendem a ser mais objetivas e eficientes (Schumacher, “Small is beautiful”, 1973), porém requerem fonte própria de recursos; (b) mediante o comportamento proativo da sociedade civil foi possível articular e interromper decisões top-down; (c) a gestão interdependente dos recursos hídricos exige definir papéis claros dos stakeholders; e (d) existe interdependência dos vértices água, alimento e energia para enfrentar desafios como a explosão demográfica e a demanda até o ano 2030 por mais 50% de energia, mais 40% de água e mais 35% de alimentos, segundo a ONU Água. (em baixo)


Já se disse que o Brasil é potência agrícola porque é uma potência hídrica, o que de fato só se verificou após a Revolução Verde, o desenvolvimento tecnológico da Embrapa em 1973 e a expansão para territórios do bioma Cerrado (savana). Seu território detentor da maior reserva de água doce do planeta (12%), tanto em superfície quanto em 23 aquíferos. A FAO Aquastat (2017) estima um total de 8,6 biliões m3/a em recursos hídricos renováveis, equivalentes à soma das reservas atribuídas à Federação Russa e aos EUA. Com precipitação anual entre 1 000 e 3 600 mm/a e evapotranspiração entre 1 000 até 2 600 mm/a (Aquastat, 2015), a bacia hidrográfica Amazónica gera 81% da disponibilidade sob uma cobertura vegetal original de 85% da área (ANA, 2020). Todavia, cresceu a intensidade da seca na Amazónia no inverno e verão passados (Figura 2).
Índice de Precipitação padronizado (SPI) – Monitoramento de Secas (Figura 2). Fonte: INPE/CPTEC – Agosto 2019, Janeiro 2020
A Lei das Águas n˚ 9.433/97 deu competência à Agência Nacional da Água (ANA) para gerir rios de domínio federal, quais sejam, aqueles que cruzam mais de um estado e, também, os de fronteira. A gestão dos demais cabe aos 26 estados e ao Distrito Federal. Das 12 regiões hidrográficas do país, a bacia Amazónica ocupa 45% e seu bioma abrange até 49%, limite da chamada “Amazônia Legal”. Sua baixíssima densidade demográfica oscila entre 2 e 6 hab/km2, mas que contrasta com as capitais do Pará (Belém, 1.315 hab/km2) e do Amazonas (Manaus, 158 hab/km2), cada uma com 2,5 milhões de indivíduos, 2/3 dos quais recebem tratamento de esgoto considerado ‘adequado’ (IBGE Cidades, 2020). Dos 5 570 municípios existentes no país, apenas 45% dispõem de abastecimento de água potável “satisfatório” (ANA, 2020), e 55% têm redes coletoras de esgotos (IBGE, 2008), inexistentes nas densamente povoadas favelas. Em nome dos investidores, a ONG Trata Brasil aponta que na população da Região Norte os esgotos beneficiam-se apenas uma parcela de 10% (dos quais tratados só 22%), enquanto na rica Região Sudeste os serviços chegam a 79% (50%).
O Congresso brasileiro iniciou 2020 com propostas para estabelecer um marco regulatório do saneamento básico com o propósito de contar com infraestruturas operadas por parcerias público-privadas num caminho aberto a reduzir a presença do Estado. Municípios de pequeno porte arriscam-se a perder direitos de concessão transferidos a consórcios interregionais cuja escala viabilizaria os investimentos de longo prazo. Inspirada no “princípio do poluidor-pagador e beneficiário-pagador”, a OCDE publicou em Novembro de 2017 um relatório intitulado “Cobrança de água no Brasil”. Age como um postulado no debate político onde sublinha a gravidade da resistência dos usuários à aceitabilidade da cobrança. O novo marco deverá contemplar subsídios e a garantia de conexões às redes de esgoto para localidades de baixa renda.
Do estoque de água, o país capta apenas 1,1% de seus mananciais e somente 0,5% destes são consumidos pelas atividades económicas (IBGE, 2015). Sem retorno à natureza, a agricultura consome 77%, seguida pela indústria de transformação com 11%. Nas despesas de distribuição e serviços de esgotos a agricultura representa apenas 0,29%, a indústria 5,1% e as famílias 58%. As contas económicas ambientais da água mostram que a eletricidade responde por 97% da retirada e uso da água, cabendo à agricultura 1%, pois 65% da eletricidade produzida vem de usinas hidrelétricas (Figura 3). Confirma a importância energética da Amazónia para o Brasil o balanço ONS (2020) que mostra que 43% da produção é transferida para o Sudeste e Centro-Oeste, 24% para o Nordeste, pois apenas 1/3 é carga consumida pelos dois centros urbanos principais e pela mineração local. Soma-se também um dos formadores da bacia do Prata, o rio Paraná, que abriga a usina de Itaipu (PR) – a segunda maior hidrelétrica mundial, depois de Três Gargantas (China). Uma vez identificada a demanda superior à capacidade de geração, a rede elétrica foi insuficiente para impedir a ocorrência de interrupções de cargas (apagões) em vastas áreas do país a partir de 1999. Todos conviveram com racionamento voluntário, novos hábitos e tarifas, e ainda hoje consumidores devem conhecer os limites técnicos.
Matrizes energética e elétrica (Figura 3). Fonte: Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Balanço Energético Nacional, 2018.
Nessa linha, a ausência de planejamento ambiental no crescimento socioeconómico no Centro-Sul foi agravada pela recorrência do fenômeno El Niño (forte, com verão e inverno quentes em 2015/2016) e La Niña (moderado, com inverno seco e verão frio em 2017/2018), em circunstâncias inéditas (CPTEC/INPE, 2020). Consequentemente, os volumes mínimos nos reservatórios revelaram a escassez hídrica em S. Paulo (2014/2016), Rio de Janeiro (2015, 2019) e Brasília (2017/2018), o que compeliu a população a um comportamento consciente do aproveitamento das águas. Vale referir que o clima causou inflação nos alimentos em 2019, ainda que inferior aos observados durante as anomalias de precipitação entre 2015 e 2016 (Banco Central, 2019).
As frequentes chuvas torrenciais de verão denunciam a fragilidade da vida urbana brasileira. Para além dos dramáticos deslizamentos de morros indevidamente habitados, as cidades ficam intransitáveis com alagamentos de logradouros em solos impermeáveis sem o devido escoamento. Restaram soluções de elevados custos orçamentais proposto pela engenharia de drenagem: a construção de 32 reservatórios (‘piscinões’) na zona metropolitana de S. Paulo. Tal iniciativa representa vontade política da predominância da corrente económica, distante do conceito de ordenamento do território que faz uso de gestão equilibrada com o ambiente. Alguns especialistas recomendam construir áreas verdes, recuperar parte da rede de córregos encobertos, e instituir a contenção do avanço imobiliário que naturalmente compromete os lençóis freáticos da cidade.

Os sucessivos desastres causados pela mineração em Mariana e Brumadinho (MG), demonstraram a carência de consciência do estado de prontidão (preparedness) realizável mediante ações de governança de risco ambiental. Logo, os decisores de políticas públicas no contexto brasileiro precisarão agir em sinergia e enfrentar os constrangimentos políticos em seus trade-offs no trato desses três vértices. Conforme afirmou-se no Seminário, a começar pelos municípios urge retomar o debate público ampliado e repor o interesse coletivo como a oportunidade para consolidar o novo paradigma adequado às alterações climáticas, o desafio maior.

Luiz Carlos de Brito Lourenço é investigador Universidade de Brasília e atualmente é investigador associado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.