Desenhar sobre catástrofes: recordar o passado, imaginar o futuro

Por Ana Sofia Ribeiro

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Mensagem de uma criança italiana sobre o período de isolamento imposto pelo COVID-19. Fonte: Francesca Bocchia

Um estado de alerta poderá não ser para muitos a melhor ocasião para recordar outras catástrofes. Precisamos de pensar em dias melhores, e num futuro que possamos abraçar sem medo. O atual estado de suspensão e recolhimento tem resultado num maior apreço pelas manifestações artísticas enquanto expressão de liberdade, reconhecendo o seu valor enquanto veículo de emoções e experiências individuais e coletivas. Assim, este contributo dá conta de um projeto de investigação baseado em desenhos sobre os incêndios de 2017, feitos por crianças habitantes de um dos territórios afetados.

No âmbito das políticas de redução do risco de catástrofe, as crianças são geralmente vistas como vulneráveis e arredadas dos planos locais de prevenção, resposta e recuperação. Contudo, tal não poderia ser mais errado, porque, em situações limite, as crianças são forçadas pelas circunstâncias a protegerem-se a si e às suas famílias, como vimos recentemente no caso australiano. Devem por isso ser integradas e ouvidas nos debates sobre estes assuntos, no espírito de participação que lhes confere o Artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança e também o Referencial para a Redução para o Risco de Desastre de Sendai, que as vê como potenciais agentes de mudança nas suas comunidades.

Partindo deste pressuposto, iniciei com Isabel Silva da organização não governamental Grupo Aprender em Festa uma investigação sobre as perspetivas das crianças residentes em Gouveia, um dos territórios afetados pelo incêndio de 15-16 de outubro de 2017. Reunindo conhecimentos académicos sobre a participação das crianças em catástrofes e sobre os territórios da zona centro, a nossa ideia era dar voz a estas crianças, que por viverem em territórios envelhecidos e de baixa densidade populacional, são muitas vezes invisíveis.

Entre Janeiro e Abril de 2018, recolhemos desenhos de 2 grupos de crianças dos 6 aos 11 anos de idade que frequentavam o ensino básico, residentes em duas freguesias do município de Gouveia. Apesar de situada no parque natural da Serra da Estrela e de ter uma paisagem florestal diversa da do Pinhal Interior (onde predominam eucaliptal e pinhal), Gouveia foi bastante atingida por este incêndio, que resultou em danos em habitações, em empresas e em animais de criação e selvagens. Seguindo o método “desenhar-escrever-contar”, pedimos às crianças um desenho e um pequeno texto que respondesse às questões:

  • como era o fogo?
  • o que sentiste, o que aconteceu, quem te ajudou? O que foi pior?
  • o que podemos fazer no futuro para nos prepararmos para estas situações?

O valor dos desenhos, além de terapêutico, reside sobretudo na sua capacidade evocativa e no poder de traduzir o que não sabemos nomear, possibilitando a inclusão de crianças com dificuldade de expressão. Alguns dos resultados deste trabalho foram publicados neste artigo em dezembro de 2019. Categorizámos os desenhos em dois grupos. Entre os que contavam histórias de contato direto com o fogo, os desenhos mostram crianças combatendo o incêndio com as suas famílias e comunidades, às vezes acompanhadas de animais, em situações que efetivamente se passaram, tendo por isso um valor documental. Outras crianças desenharam o pavor e angústia sentidos, em que a natureza espelha também as suas emoções. Entre os desenhos provenientes de crianças que não tiveram contato direto com o fogo, resultaram representações de teatros de operações e relatos mediados pelos noticiários e debates na comunidade, onde discursos pouco claros sobre a causalidade do evento levam ao apontar de culpas a “homens maus” ou elementos naturais (“sol muito forte”). Campanhas sobre limpeza de florestas também influenciaram bastante os relatos das crianças, que se oferecem para sensibilizar as suas comunidades. O que ressaltou mais foi o desejo das crianças de ajudarem e serem envolvidas nestas situações, já que se veem como membros ativos e capazes. Entre as crianças que ficaram paralisadas frente ao ocorrido, resulta alguma culpa pela sua não reação.

A nossa investigação sublinha então a necessidade de estabelecer comunicação dirigida às crianças, fornecendo suporte psicológico e treino de autoproteção, considerando as suas dúvidas e medos e permitindo que se sintam seguras nestas situações. Algumas destas sugestões foram já colocadas em prática por vários agentes nacionais e locais, tendo o projeto CUIDAR dado um grande contributo. Outras iniciativas para desenvolvimento do interior estão a ser lançadas, e são seguidas no meu atual projeto de investigação sobre a recuperação dos incêndios vivida pelas crianças e jovens habitantes nestes territórios.

Voltando ao momento presente, muitas crianças encontram-se agora nas suas casas em isolamento familiar, situação desafiante e que exige enorme criatividade na ocupação do tempo. Sugiro então pegar nas canetas e em papéis, e imaginar o senhor Corona, ou um futuro sem ele. Porque os desenhos são a primeira forma de representarmos aquilo de desconhecemos, mas também o que desejamos.


Ana Sofia Ribeiro é investigadora em educação e sociologia, atualmente financiada pelo programa Estímulo ao Emprego Científico da Fundação para Ciência e Tecnologia. Os seus interesses prendem-se com as catástrofes, juventude, metodologias artísticas e territórios de baixa densidade.

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