Por Joana Sá Couto
Para a minha dissertação de mestrado, cujo foco foi a relação entre práticas piscatórias e poluição marítima por plásticos, iniciei a minha primeira aventura enquanto antropóloga na comunidade piscatória de Setúbal, marcadamente masculina. Este post tem como objetivo salientar alguns resultados relevantes, assim como ajudar-me a refletir acerca de questões metodológicas e de produção de conhecimento na defesa de uma antropologia de envolvimento.
Em 2017, após ter obtido as devidas autorizações das entidades para estar nos locais da lota, os primeiros dias de trabalho de campo foram difíceis e silenciosos. Na muralha da lota, vendo os barcos a descarregar, movimento de pescadores, “Bons dias” não respondidos e olhares desconfiados em relação ao meu caderno, cedo percebi que não me devia oferecer para ajudar nas descargas. É o trabalho dos “ajudas”, que recebem para descarregar o peixe dos barcos, pesá-lo, e guardá-lo para o leilão das 20:00h desse dia. Partilhei com eles muito tempo, tornando-os verdadeiros ajudas também para mim, com comentários como “A menina disse-te bom dia, oh. És mal-educado?”.

Fotografia de Joana Sá Couto
Comecei igualmente por sentar-me com os que trabalhavam sentados na muralha, desentralhando redes de nylon e, principalmente, com os que remendavam redes de cerco. Antigos pescadores reformados que hoje continuam ligados à pesca através desta atividade, conversando sobre o antigamente. O meu papel no terreno começou por ser o de uma total estranha, uma menina a fazer um trabalho e a com perguntas – por mais que reforçasse o que estava a fazer, o meu aspeto físico, parecendo mais nova do que sou, tornou difícil mudar este estatuto. Chego a desabafar nas minhas notas que quando faço perguntas específicas sobre o tema do meu trabalho, a conversa morre, tendo de ser quase que arrancada.

Em outubro tudo mudaria com uma simples frase: “Aproveita o F.M. [mestre de terra reformado e respeitado na comunidade] e aprende mas é. Vá, ensinem a miúda”. Assim, aprendi as diferenças entre pontos e nós, comecei a ajudar mais no alar pesado da rede e, com o passar do tempo, não apenas viria a receber e a ganhar o meu balde de peixe, mas também vinham pescadores ter comigo para me ver a trabalhar e conversar comigo. Passei dos comentários como “Então princesa, não se faz nada?” para ser chamada de pescadora pequenina e ganhar um papel no terreno. Assim ganhei respeito, confiança, carinho e confidência.

Fotografia por Joana Sá Couto
(Setúbal, 2018)
Os relatos iniciais de decadência da pesca, em que me avisavam para não me preocupar com este tema, passaram a belíssimas narrativas sobre a liberdade, a conexão com a natureza e discursos controversos sobre sobrepesca, artes que destroem os mares e comportamentos com grandes impactos ambientais. Meses mais tarde fui finalmente convidada para partilhar uma refeição, o que me permitiu passar mais tempo num terreno que se alargara, mas também ficar abrigada nos piores meses de inverno na companhia de pescadores reformados que entralhavam redes de nylon (plástico), fulcrais para o tema da minha tese.

Fotografia por Joana Sá Couto
(Setúbal, 2019)
Aqui convivi com pessoas gentis que me ensinaram mais nós, costuras, e a entralhar redes, gabando-se felizes de ensinarem “à menina aquilo que muitos hoje não sabem”. Estive presente em momentos tristes, de zangas e morte, e em momentos felizes, como aniversários e celebrações. Tive a possibilidade de partilhar da mesma travessa, comer com pão e navalha, rir com eles no karaoke, salvar gaivotas presas em redes e chorar com lembranças do passado. Hoje, chamam-me neta, bisneta, e emocionam-se quando conto que fui falar aqui e ali sobre o trabalho que fiz com eles: “Mostraste os nós? O que é que as pessoas acharam? A pesca é uma coisa bonita até, não é?”.
Na minha dissertação descrevi o capítulo da metodologia de forma muito clássica, como se de uma sequência de métodos se tratasse. Neste post tenho a possibilidade de expressar um pouco do calor através do qual se gera um conhecimento cocriado, porque sem estas pessoas hoje não escreveria isto. Sem me terem aceitado no seio da sua comunidade não teria produzido uma dissertação, nem teria aprendido um pouco da cocriação de conhecimento com e pelas pessoas, numa prática de aprendizagem a que Tim Ingold chama de antropologia.
A pesca é muito mais do que apenas uma atividade económica extrativa que depende do meio natural hoje em risco – implica que os seus praticantes conjuguem corpo e mente em interconexão com o ambiente ao longo de um contínuo somático-semiótico. Os pescadores (conceito complexo e merecedor de uma discussão mais longa) conhecem os mares melhor que ninguém. A sua perceção dos ecossistemas é abrangente e a tendência para permanecer na atividade durante muitos anos permite-lhes ter uma noção das principais alterações ao longo do tempo nas várias dimensões, não apenas dos peixes, mas também dos fundos do mar, ventos, algas, entre outros exemplos, algo que nos permite refletir acerca da forte relação de proximidade destes seres humanos com a natureza. Têm estratégias de reaproveitamento do material que lhes permitem poupanças ao nível económico e uma redução do desperdício e da poluição. É preciso é saber escutar. Estes meus professores comunicam por histórias e não através de factos precisos, e muitas vezes ensinam fazendo, assim como aprendem fazendo.


Fotografia por Joana Sá Couto
Setúbal, 2017
Para entender estas questões, é preciso escutar estas comunidades, sim, mas para tal é necessário ganhar a sua confiança, difícil de conquistar. Neste caso particular, esta comunidade de Setúbal é hoje confrontada com o dever de não poluir o mar com aqueles mesmos plásticos que fizeram parte das causas que foram fatais à sua atividade e ao seu modo de vida, através da perda de conhecimento e perda de identidade. Paralelamente, a pressão acrescida causada por discursos aquecidos de ativistas alimentam a sombra de declínio em que se sentem mudos para quem toma as decisões políticas a uma escala totalmente diferente. Mas há muito mais que podemos fazer. Podemos evitar que conhecimentos tradicionais, como os que aprendi, se percam. Podemos ajudar a incluir o conhecimento destas pessoas na criação de medidas de conservação mais sustentáveis a todos os níveis. E mais do que isso, podemos escutar, partilhar um prato, um abraço, deixar-nos motivar pela envolvência para enfrentar as partes menos boas do trabalho. Hoje creio que separar os pescadores do mar, aqueles que realmente, neste mundo moderno, quebram aquela dicotomia cartesiana Humano/Natureza, só nos levará a um afastamento cada vez maior da natureza, algo com consequências verdadeiramente insustentáveis.
Joana Sá Couto é antropóloga, Mestre em Estudos de Ambiente e Sustentabilidade e atualmente doutoranda no Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, tem vindo a interessar-se pelas problemáticas ambientais relacionadas com os mares e oceanos, e como estas têm vindo a afetar comunidades vulneráveis na sua relação com o quotidiano, tendo a etnografia como abordagem. Foi Bolseira de Investigação no Projecto PEARLS –Planning and Engagement Arenas for Renewable Energy Landscapes e é hoje Bolseira do Projeto RIVEAL – Valores e serviços dos ecossistemas fluviais e das florestas ripárias em paisagens fluviais alteradas e futuros climáticos incertos.