Consulta pública sobre clima e combustíveis

Por Ana Delicado, Luísa Schmidt, Madalena Dias Santos, Joana Sá Couto, Carla Gomes e Mara Almeida

No dia 1 de junho de 2019, a equipa do Observa organizou uma consulta a cidadãos para aferir a aceitabilidade de combustíveis de carbono reciclado. 29 pessoas prescindiram de uma manhã de sábado solarenga para vir discutir questões ambientais e dar o seu contributo para a produção de conhecimento científico.

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Consulta pública sobre clima e combustíveis, 01/06/2019. Fonte: Ana Delicado.

Esta consulta pública foi realizada no âmbito do projeto europeu eForFuel, liderado pelo Max Planck Institute of Molecular Plant Biology, que está a desenvolver um processo de reciclagem e reutilização do dióxido de carbono emitido por fábricas. O carbono reciclado pode ser transformado em combustíveis, têxteis, plásticos ou mesmo alimentação animal. Estes combustíveis continuarão a ser emissores de CO2 quando utilizados, mas poderão ser importantes para setores como a aviação (estamos longe de conseguir construir aviões comerciais elétricos) ou a indústria siderúrgica (visto que o aço é o produto da combinação de ferro e carbono do CO2).

Portugal não participa neste projeto de investigação, mas graças à experiência de organização da consulta pública World Wide Views Clima e Energia fomos contactadas pela Biofaction, uma empresa austríaca especializada em comunicação de ciência. Estavam interessados em alargar a amostra de países onde iriam testar o grau de aceitação destes combustíveis reciclados para além dos parceiros do projeto. É revelador da crescente importância atribuída à participação dos cidadãos que este projeto de ciência pura e dura tenha um Work Package dedicado à perceção pública e comunicação. Ou talvez revelador do sucesso das políticas de financiamento europeu da ciência, que impõem a inclusão da dimensão RRI (Responsible Research and Innovation, ou Investigação e Inovação Responsáveis) nas candidaturas.

Seguindo uma adaptação a pequena escada do modelo WWViews, a consulta pública desenvolveu-se em três fases, repetidas três vezes: para cada um dos três temas, os cidadãos assistiram a um curto vídeo explicativo, depois discutiram em pequenos grupos (entre 7 e 8 pessoas) conduzidos por um moderador, e, no final, responderam a um questionário. Os três temas em debate foram: (1) introdução aos combustíveis fósseis, CO2 e captura de carbono; (2) projeto eForFuel, ambições e possíveis aplicações; (3) dimensões económicas, subsídios e fontes de energia. Os cidadãos tiveram, pois, oportunidade de discutir e deliberar sobre a importância da captura de carbono para a mitigação das alterações climáticas, sobre a comparação entre combustíveis fósseis, combustíveis reciclados e fontes de energia renováveis, e sobre os diferentes usos que o carbono reciclado pode ter e os subsídios ou incentivos que poderá vir a receber.

À equipa portuguesa coube o papel de traduzir os materiais (textos dos vídeos, questionários), recrutar os participantes, organizar o evento e recolher e traduzir as respostas, bem como sintetizar os resultados das discussões realizadas nas várias mesas. Porém, foi-nos dada também oportunidade de comentar e fazer sugestões sobre os conteúdos dos materiais, de forma a assegurarmos que a informação fornecida aos participantes fosse clara e imparcial, de modo a não dirigir as respostas para as mais ajustadas aos interesses dos parceiros do projeto. Nestes processos consultivos há frequentemente o risco de que a participação seja apenas simbólica, um item numa lista que tem de ser cumprido, ou, pior ainda, manipulada para produzir os resultados que mais convêm aos seus promotores. Se para mitigar o primeiro risco pouco podemos fazer, uma vez que não somos parceiros do projeto, no caso do segundo era imperioso impedir que o rigor e a imparcialidade científicos fossem postos em causa. Tal foi feito através de leituras sucessivas dos materiais por vários membros da equipa portuguesa, mas também de outras equipas sucessivas. As sugestões de retificação foram aceites pela equipa da Biofaction.

Neste processo, deparámo-nos com as dificuldades habituais. Em primeiro lugar, o recrutamento dos participantes. Recorremos às redes sociais, a contactos pessoais, ao método da “bola de neve”. Tínhamos de assegurar uma amostra de dimensões razoáveis (entre 25 e 35 participantes), mas também suficientemente diversificada em termos de género, idade, escolaridade e atividade profissional, ainda que não representativa da população portuguesa (o desafio impossível de assegurar a participação dos menos escolarizados, que ainda constituem a maioria dos cidadãos nacionais). Claro que é impossível representar a “opinião pública” portuguesa com uma amostra de pouco menos de três dezenas de pessoas, para mais selecionada a partir de cidadãos dispostos a discutir um tema pouco familiar.

Em segundo lugar, o problema do tema. Se questões mais gerais, como o clima ou a energia, têm o potencial de despertar maior interesse, o assunto específico de um tipo de combustível em desenvolvimento, que ainda não existe comercialmente, é particularmente desafiante. Para mais, como traduzir a linguagem tecnológica em linguagem simples, mas exata? Como dar informação suficiente para as pessoas poderem exprimir a sua opinião sem entrar em detalhes técnicos demasiado especializados? E como responder às perguntas dos participantes sem nós próprias determos conhecimento aprofundado sobre o tema?

Em terceiro lugar, os desafios próprios dos métodos participativos. As discussões podem tomar caminhos imprevisíveis, afastar-se do tópico central, gerar conflito entre os participantes, expor relações de poder desequilibradas. As moderadoras têm de navegar com habilidade entre a gestão do tempo, o cumprimento dos objetivos, e dar e retirar a palavra na medida justa.

No final, esta revelou-se uma experiência satisfatória. Gerámos resultados que poderão ser utilizados pelos parceiros do projeto para adequar o seu produto às expectativas, necessidades e inquietações dos cidadãos. Proporcionámos aos participantes uma oportunidade de exprimir a sua opinião e fazer parte da construção social da ciência. Afinámos as nossas capacidades em termos de metodologias participativas. E, uma vez que muitos participantes exprimiram agrado pelo decurso dos trabalhos e mostraram ensejo de voltar a participar em eventos semelhantes, podemos dizer que cumprimos os nossos objetivos.


Ana Delicado é investigadora auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e vice-coordenadora do Observa.

Luísa Schmidt é investigadora principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e coordenadora do Observa.

Madalena Dias Santos é investigadora no projecto ODSlocal – Portal Municipal dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em colaboração com o CNADS, a MARE e a 2adapt, e colaboradora do Observa.

Joana Sá Couto é investigadora do projeto PEARLS Planning And Engagement Arenas For Renewable Energy LandscapeS, que decorre no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e colaboradora do Observa.

Carla Gomes é investigadora dos projetos Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve e Monitorização e Implementação da Estratégia Municipal de Adaptação do Município de Loulé, que decorrem no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e colaboradora do Observa.

Mara Almeida é investigadora auxiliar do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa.

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