Por João Afonso Baptista
São duas da tarde. O sol, a luz e o calor estão violentos. Dona Rosa, como é seu hábito nesta altura do ano, está a descascar marula, a fruta que, dizem aqui, “embebeda até elefante”. Estou sentado numa cadeira de plástico junto a ela, protegido pela sombra de um canhoeiro corpulento, muito perto da estrada de terra que atravessa a aldeia. De repente, ela interrompe o descascar da marula e eu paro de falar. Ouvimos um som exótico: vem aí um carro.
Poucos segundos depois, um 4X4 cinzento metalizado entra na aldeia. Não pára. Dentro do carro, vão dois turistas europeus. Canhane, a aldeia no sudoeste de Moçambique onde Dona Rosa vive, não está habituada a carros. Mas neste momento invulgar o que nos desperta mais é a velocidade destemperada com que o veículo fura pela aldeia adentro. A marula húmida despida de casca que Dona Rosa acumula nos baldes está agora coberta com pó vermelho da estrada, tal como nós ficámos. Num tom sereno, Dona Rosa comenta: “Eles devem voltar aqui para visitar a comunidade.” O carro progride apressadamente e, da mesma forma como entrou, sai de Canhane afugentando os cabritos e as crianças que surjem à sua frente.
A pergunta óbvia à Dona Rosa: “Por que é que eles querem vir aqui?” Coberta com o pó seco deixado pelo carro, responde: “Porque o turista quer ver o que fazemos com o seu dinheiro. Quer saber como a comunidade se desenvolve.” Este episódio inspirou-me a escrever o livro The Good Holiday: Development, Tourism and the Politics of Benevolence in Mozambique, publicado em 2017 pela Berghahn Books.

Ao fim de várias semanas a viver em Canhane, naquele dia e naquela hora Dona Rosa abriu-me a porta para o novo ofício e a nova arte de viver nesta aldeia moçambicana desde que despertou para o “turismo comunitário”. A sua resposta espontânea anunciou o que eu viria a constatar nos próximos meses: os habitantes desta aldeia esquecida pelos regimes colonial e póscolonial em Moçambique adotaram uma nova identidade coletiva com valor para o mundo contemporâneo – o ser e parecer uma “comunidade em desenvolvimento”.
E foi assim, fruto de uma ocorrência do acaso, que eu abracei um novo desafio na minha forma de fazer antropologia: o fenómeno da mobilização transnacional de pessoas e instituições para ajudar Outros. Grande parte do livro The Good Holiday é dedicado ao papel que a aldeia de Canhane desempenha como produto mas também como produtora desse fenómeno.

Em 2002, uma Organização Não Governamental (ONG) suíça selecionou Canhane para se tornar no primeiro caso de “turismo comunitário” em Moçambique. A arquitetura de “pobreza”, a aura de “nativismo” e a proximidade ao Parque Transfronteiriço do Grande Limpopo fizeram desta aldeia um alvo natural para o mercado internacional do desenvolvimento. Desde então, tal como em muitos outros locais no mundo, Canhane, as pessoas que lá vivem, os turistas que a visitam, e as instituições que promovem esta interação são estimulados por uma indústria a que chamo developmentourism. Nesta indústria, as atividades e os interesses dos sectores profissionais do desenvolvimento e do turismo fundem-se: desenvolvimento é turismo, e turismo é desenvolvimento. Dito de outra maneira, na indústria do developmentourism, as ações dos turistas confundem-se com as atividades das Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD), tal como o trabalho dos profissionais destas Organizações se confunde com as atividades dos turistas.

A pequena aldeia rural de Canhane tem esta curiosidade: amplifica os sintomas do mundo global moderno. Nesta aldeia, aprende-se muito não apenas sobre a vida local, mas também sobre as ansiedades, moralidades e necessidades inerentes à vida cosmopolita nas grandes metrópoles do mundo moderno. Os turistas e os profissionais do desenvolvimento desses sítios que visitam a aldeia transportam e descarregam, muitas vezes, esses sintomas nos residentes locais e nos espaços onde circulam.

Habitei e vivi Canhane praticamente durante o ano inteiro de 2008. Aprendi muito. Aprendi, por exemplo, sobre o poder avassalador que a palavra “comunidade” exerce sobre comportamentos e localidades – especialmente no mundo do developmentourism, “comunidade” é um conceito que formata modos de pensar. Aprendi como o auto-orientalismo se pode tornar numa estratégia importante dos orientalizados. Aprendi sobre a forma como as sensações dos sentidos, que enchem os nossos quotidianos e estão associadas a ideais de pureza e autenticidade, podem ser afinal governadas por outras e outros. Aprendi também acerca da ética do consumo e, sobretudo, do consumo de ética – a mercadorização do que parecia ser incomensurável, intransacionável. Aprendi sobre o enorme impacto que certas formas de governação não-governamental têm na vida global contemporânea. Finalmente, Canhane ensinou-me a ver certos turistas, especialmente as e os developmentourists que carregam consigo conceções morais sobre “desenvolvimento local” e a ansiedade de exercer essas conceções nos “Outros,” como uma espécie de governadores governados.
João Afonso Baptista é antropólogo e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.