Turismo, desenvolvimento e os governadores governados

Por João Afonso Baptista

São duas da tarde. O sol, a luz e o calor estão violentos. Dona Rosa, como é seu hábito nesta altura do ano, está a descascar marula, a fruta que, dizem aqui, “embebeda até elefante”. Estou sentado numa cadeira de plástico junto a ela, protegido pela sombra de um canhoeiro corpulento, muito perto da estrada de terra que atravessa a aldeia. De repente, ela interrompe o descascar da marula e eu paro de falar. Ouvimos um som exótico: vem aí um carro.

Poucos segundos depois, um 4X4 cinzento metalizado entra na aldeia. Não pára. Dentro do carro, vão dois turistas europeus. Canhane, a aldeia no sudoeste de Moçambique onde Dona Rosa vive, não está habituada a carros. Mas neste momento invulgar o que nos desperta mais é a velocidade destemperada com que o veículo fura pela aldeia adentro. A marula húmida despida de casca que Dona Rosa acumula nos baldes está agora coberta com pó vermelho da estrada, tal como nós ficámos. Num tom sereno, Dona Rosa comenta: “Eles devem voltar aqui para visitar a comunidade.” O carro progride apressadamente e, da mesma forma como entrou, sai de Canhane afugentando os cabritos e as crianças que surjem à sua frente.

A pergunta óbvia à Dona Rosa: “Por que é que eles querem vir aqui?” Coberta com o pó seco deixado pelo carro, responde: “Porque o turista quer ver o que fazemos com o seu dinheiro. Quer saber como a comunidade se desenvolve.” Este episódio inspirou-me a escrever o livro The Good Holiday: Development, Tourism and the Politics of Benevolence in Mozambique, publicado em 2017 pela Berghahn Books.

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A estrada que atravessa a aldeia. Foto do autor, 2008.

Ao fim de várias semanas a viver em Canhane, naquele dia e naquela hora Dona Rosa abriu-me a porta para o novo ofício e a nova arte de viver nesta aldeia moçambicana desde que despertou para o “turismo comunitário”. A sua resposta espontânea anunciou o que eu viria a constatar nos próximos meses: os habitantes desta aldeia esquecida pelos regimes colonial e póscolonial em Moçambique adotaram uma nova identidade coletiva com valor para o mundo contemporâneo – o ser e parecer uma “comunidade em desenvolvimento”.

E foi assim, fruto de uma ocorrência do acaso, que eu abracei um novo desafio na minha forma de fazer antropologia: o fenómeno da mobilização transnacional de pessoas e instituições para ajudar Outros. Grande parte do livro The Good Holiday é dedicado ao papel que a aldeia de Canhane desempenha como produto mas também como produtora desse fenómeno.

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O caminho para o Lodge. Foto do autor, 2008.

Em 2002, uma Organização Não Governamental (ONG) suíça selecionou Canhane para se tornar no primeiro caso de “turismo comunitário” em Moçambique. A arquitetura de “pobreza”, a aura de “nativismo” e a proximidade ao Parque Transfronteiriço do Grande Limpopo fizeram desta aldeia um alvo natural para o mercado internacional do desenvolvimento. Desde então, tal como em muitos outros locais no mundo, Canhane, as pessoas que lá vivem, os turistas que a visitam, e as instituições que promovem esta interação são estimulados por uma indústria a que chamo developmentourism. Nesta indústria, as atividades e os interesses dos sectores profissionais do desenvolvimento e do turismo fundem-se: desenvolvimento é turismo, e turismo é desenvolvimento. Dito de outra maneira, na indústria do developmentourism, as ações dos turistas confundem-se com as atividades das Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD), tal como o trabalho dos profissionais destas Organizações se confunde com as atividades dos turistas.

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Developmentourism em Canhane (retrato I). Foto do autor, 2008.

A pequena aldeia rural de Canhane tem esta curiosidade: amplifica os sintomas do mundo global moderno. Nesta aldeia, aprende-se muito não apenas sobre a vida local, mas também sobre as ansiedades, moralidades e necessidades inerentes à vida cosmopolita nas grandes metrópoles do mundo moderno. Os turistas e os profissionais do desenvolvimento desses sítios que visitam a aldeia transportam e descarregam, muitas vezes, esses sintomas nos residentes locais e nos espaços onde circulam.

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Developmentourism em Canhane (retrato II). Foto do autor, 2008.

Habitei e vivi Canhane praticamente durante o ano inteiro de 2008. Aprendi muito. Aprendi, por exemplo, sobre o poder avassalador que a palavra “comunidade” exerce sobre comportamentos e localidades – especialmente no mundo do developmentourism, “comunidade” é um conceito que formata modos de pensar. Aprendi como o auto-orientalismo se pode tornar numa estratégia importante dos orientalizados. Aprendi sobre a forma como as sensações dos sentidos, que enchem os nossos quotidianos e estão associadas a ideais de pureza e autenticidade, podem ser afinal governadas por outras e outros. Aprendi também acerca da ética do consumo e, sobretudo, do consumo de ética – a mercadorização do que parecia ser incomensurável, intransacionável. Aprendi sobre o enorme impacto que certas formas de governação não-governamental têm na vida global contemporânea. Finalmente, Canhane ensinou-me a ver certos turistas, especialmente as e os developmentourists que carregam consigo conceções morais sobre “desenvolvimento local” e a ansiedade de exercer essas conceções nos “Outros,” como uma espécie de governadores governados.


João Afonso Baptista é antropólogo e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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