Etnografia breve de uma vila piscatória em mutação

Por Ana Delicado

Santa Luzia é uma vila e uma freguesia (a mais pequena) do concelho de Tavira, no extremo sudoeste de Portugal. Ocupa uma área de 8,5 km2 e tem uma população de perto de milhar e meio de habitantes, de acordo com os últimos censos (2011). É uma vila de pequenas casas predominantemente brancas, bordejada por um braço da Ria Formosa e rodeada de campos agrícolas e salinas. Tem em frente um troço da Ilha de Tavira onde se situa uma praia consistentemente distinguida pelos galardões da Bandeira Azul e da Bandeira Dourada, acessível apenas por ferryboat na época balnear.

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Figura 1. Imagem de satélite de Santa Luzia, © Google Terrametrics, 2017

Desde o século XVI que há um núcleo populacional neste local, construído em torno de uma ermida dedicada à santa titular, hoje substituída por uma pequena igreja de traça moderna.

A pesca sempre foi a principal atividade económica e o eixo da identidade local. Até meados do século XX foi predominante a pesca do atum, através de uma armação frente à praia do Barril, instalada anualmente em abril e removida em setembro, que sustentava dezenas de famílias. Imortalizada nas fotografias de Artur Pastor (Figura 2) e no livro de Fausto Costa A Pesca do Atum nas Armações da Costa Algarvia (editora Bizâncio, 2000), a Armação do Barril (também chamada dos Três Irmãos), fundada em 1867, encerrou em 1966, devido ao acentuado declínio do número de exemplares desta espécie capturados. Igual sorte tiveram todos os arraiais (bases de operação da pesca de atum, que incluíam edifícios para processamento do pescado mas também para habitação dos trabalhadores) da zona, sendo a última campanha do Arraial da Abóbora alvo de um documentário de Hélder Mendes, “Almadrava atuneira” (ver vídeo).

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Figura 2. Cenas da Vida Piscatória. Santa Luzia, Armação do Barril. Décadas de 40/50. Arquivo Municipal de Lisboa, Coleção Artur Pastor PT/AMLSB/ART022940

Pescadores de Santa Luzia dedicaram-se também à pesca do bacalhau na Gronelândia e na Terra Nova durante o Estado Novo. Muitos correram o mundo ao serviço da marinha mercante. Mais tarde, a atividade piscatória local redirigiu-se para a captura do polvo, tendo uma lota exclusivamente dedicada à venda do cefalópode. Apesar da construção em 2005 do porto de pesca e dos abrigos para os “mestres de terra” (Figura 3), responsáveis pelo fabrico e recuperação dos covos (armadilhas em ferro e plástico), hoje em dia a pesca na freguesia está em franco declínio, mais uma vez devido à diminuição de stocks da espécie (cf. a tese de doutoramento de Carlos Sonderblohm sobre Pescas e Gestão Participativa do polvo capturado no Sul de Portugal). Os barcos de recreio já ultrapassam em número as duas dezenas de embarcações de pesca fundeadas no porto.

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Figura 3. Abrigos de pesca, fotografia de Nuno Alves, 2017

A pesca converteu-se então de atividade económica em recurso patrimonial, mobilizável sobretudo para o turismo. A Armação do Barril é hoje um monumento classificado, tendo sido reconvertida em área comercial, com lojas e restaurantes (um dos quais denominado “Museu do Atum”, que inclui uma exposição sobre o tema). O apodo “Capital do Polvo” hoje indica sobretudo as especialidades servidas nos restaurantes locais, que usam o dito como ex-libris (Figura 4) e alcatruzes e covos a servirem de decoração. O Centro Ciência Viva mais próximo (Tavira) organiza regularmente no Verão, em protocolo com a associação local Lais de Guia Associação Cultural do Património Marítimo, visitas guiadas pela “Rota do Polvo” e pela “Rota do Atum”, combinando informação científica da biologia e etnografia e cooptando como guias antigos pescadores. As festas anuais locais intitulam-se “dos pescadores” e, para além dos rotineiros carrosséis, barracas de farturas e concertos, incluem um dia dedicado a atividades recreativas marítimas tradicionais, como regatas de barcos (tendo há uns anos sido feita uma campanha para recuperar um barco tradicional, o Cavalinhos) ou o “pau de sebo” (Figura 5).

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Figura 4. Tabuleta de um restaurante local, fotografia de Nuno Alves, 2017
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Figura 5. Jogos tradicionais durante as Festas dos Pescadores, fotografia de Nuno Alves, 2017

Santa Luzia mantém outras atividades económicas para além da pesca, como a apanha de marisco, a produção de sal, a agricultura (tanto em regime de agricultura biológica como explorações intensivas de citrinos e framboesas, responsáveis pelo aparecimento na freguesia de trabalhadores oriundos do sudeste asiático). Mas é o turismo que atualmente sustenta a magra economia local, ocupando perto de metade da população empregada. Para além do aldeamento turístico de Pedras del Rey, Santa Luzia não tem unidades hoteleiras, mas encontram-se perto de duas dezenas de alojamentos locais registados no Airbnb. De acordo com os últimos censos, em 2011 55% dos alojamentos da freguesia eram de uso sazonal, segundas habitações de residentes noutros pontos do país ou no estrangeiro.

Também em 2011, 6% dos residentes eram de nacionalidade estrangeira. Hoje em dia esse valor será muito superior, uma vez que regimes fiscais favoráveis tornaram ainda mais aliciante a escolha de Portugal, e do Algarve em particular, como país para passar a reforma por parte de nacionais europeus. Franceses, holandeses, ingleses, suecos têm sido os compradores maioritários de casas na vila, o que acaba por ter um efeito positivo, uma vez que lá passam largas temporadas (sobretudo na época baixa), mantendo vivo o comércio e a restauração local, enquanto os não residentes nacionais deixam as suas casas vazias perto de 11 meses por ano. Curiosamente, estrangeiros e nativos partilham o gosto pelo jogo tradicional da petanca, ainda que os dois grupos nunca se misturem ou compitam entre si (Figura 6).

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Figura 6. Jogo de petanca, fotografia de Nuno Alves, 2017

Menos positivo é o efeito desta procura no preço das casas, sobretudo no centro antigo da vila e nas partes mais nobres do bairro dos pescadores construído na década de 1950, o que incentiva os residentes locais a vender as suas casas e a migrar para os prédios na periferia, quebrando antigas redes de sociabilidade. No entanto, a mudança nem sempre é negativa: permitiu a um velho pescador ter um apartamento com piscina, onde toma banho nas noites quentes de Verão.


Ana Delicado é investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, vice-coordenadora do Observa – Observatório de Ambiente, Território e Sociedade e proprietária de uma segunda habitação em Santa Luzia. ana.delicado@ics.ulisboa.pt 

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2 thoughts on “Etnografia breve de uma vila piscatória em mutação

  1. Luís Gameiro 22 Fevereiro 2018 / 10:44 am

    Bom artigo, saúdo a autora. Apenas um reparo, o documentário “Almadraba Atuneira” não é sobre o Arraial Ferreira Neto como diz, mas sim sobre o Arraial da Abóbora, estrutura desaparecida nos anos ’60. Cumprimentos,
    Luís Gameiro

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  2. orlando barrocas 4 Março 2018 / 10:41 am

    Muito bom

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