Por José Gomes Ferreira
Assiste-se em várias geografias ao alastrar da crise hídrica a uma escala sem precedentes, agravada pela rapidez das alterações climáticas em curso, que intensificam as ameaças à disponibilidade de recursos hídricos, mas também pela crescente procura de água resultante do crescimento da população mundial, pelo aumento do consumo per capita e pela expansão da agricultura de regadio, como mostram os dados da FAO e a publicação Global Water Outlook to 2025. O problema pode acentuar disputas pelo recurso e por territórios que o possuem, intensificadas face à desigual distribuição geográfica e social da água, e à tensão entre o entendimento da água como bem comum e direito humano, tal como classificado pelas Nações Unidas em 2010, e a pressão pela sua mercantilização, de que nos fala Pedro Arrojo Agudo.
Para garantir o armazenamento, transporte e fornecimento de água têm sido colocadas em prática, por um lado, soluções de longo prazo, privilegiando a construção de infraestruturas seguindo na sua génese soluções hidráulicas de grandes dimensões, tais como barragens, canais e adutoras de transporte de água. E, por outro, medidas emergenciais que procuram levar água a populações em situações de colapso no abastecimento, tal como acontece neste momento nos municípios da região de Viseu, que na iminência do colapso da barragem de Fagilde estão a recorrer ao abastecimento através de camiões-cisterna. No Nordeste brasileiro, a utilização de camiões-cisternas é uma prática comum, numa região em que as políticas públicas recorrem adicionalmente a medidas assistenciais de apoio aos pequenos produtores agrícolas, de modo a fixá-los nas suas explorações e a evitar a saída de ´retirantes`, os refugiados ambientais nordestinos.

A opção pela construção de grandes canais ou adutoras de transporte de água é conhecida desde a Antiguidade. Na sua análise sobre as origens do capitalismo, Max Weber mostrou que a existência de infraestruturas de irrigação constituía um forte impulso à modernização dos estados, por implicar a existência de uma estrutura burocrática de gestão e planeamento, e por articular os usos agrícolas e o abastecimento urbano. Séculos mais tarde, o desenvolvimento tecnológico e os novos conhecimentos de engenharia e de materiais do período pós-Revolução Industrial proporcionaram o surgimento de empreendimentos de grandes dimensões, parte dos quais utilizados a partir daí igualmente para produção de energia. Em vários países, muitas propostas foram apenas planeadas, pelo que nunca chegaram a avançar. Ainda assim, parte destas permaneceu simbolicamente na agenda de opções de resolução dos problemas da seca.
Este é um pontos de partida para a realização de uma pesquisa internacional que compara dois casos aparentemente distintos. São eles: i) a polémica do transvase do Tejo-Segura, por ser a que nos afeta de forma direta e ser um tema na ordem do dia com o acentuar da seca na Península Ibérica: e, mudando de hemisfério terrestre, o projeto de transposição da água do rio São Francisco para as bacias setentrionais do semiárido brasileiro, ou seja, o transvase das águas deste rio como solução para a seca no interior do Nordeste. Numa leitura prévia verificamos que entre estes dois casos existem algumas semelhanças, ressalvando naturalmente diferenças quanto à dimensão das obras, concretização, valor simbólico como proposta de desenvolvimento, envolvimento da academia e processo de contestação por parte da sociedade civil.
Historicamente, identificamos uma quase coincidência na data das propostas fundadoras. O transvase das águas do rio Tejo tem antecedentes na Proposta de Lei sobre Caminhos e Canais, levada às Cortes (Espanha) em 1820, mas somente formalizada em 1933 no Plano Nacional de Obras Hidráulicas. A obra avançou e a primeira fase ficou concluída em 1960. Por sua vez, em 1818, ainda no governo de Dom João VI, ou seja, no final da presença portuguesa no Brasil, foi apresentada a primeira proposta de transposição das águas do rio São Francisco, que pretendia levar água deste ao rio Jaguaribe, no Ceará. Ao contrário do transvase Tejo-Segura, a transposição foi sucessivamente adiada e somente em 2017 foi inaugurado o Eixo Leste, pelo que falta ainda concluir o Eixo Norte.
Nos casos em análise, mas também noutros (por exemplo, no rio Colorado, na Califórnia), a irrigação assume-se como uso predominante. Na Península Ibérica, a água é retirada da cabeceira do rio Tejo e transferida para a produção agrícola da região de Múrcia, Na transposição das águas do São Francisco, ainda que o projeto afirme que o uso prioritário previsto seja o consumo humano e a dessedentação animal, a água irá igualmente ser usada na produção agrícola intensiva em áreas irrigadas, entre as quais o Vale do Açu, conhecido por ser grande produtor de fruta tropical, integrando o mercado de commodities, através do qual o Brasil exporta grandes quantitativos de água virtual, ou seja, a água incorporada nos produtos, bens ou serviços, considerando as características ambientais de cada região na avaliação dos impactos e usos da água, do início da produção da matéria-prima à comercialização do produto.
O debate sobre justiça socioambiental, associado à discussão sobre as desigualdades regionais e sociais no acesso e sobre as prioridades no uso da água, tem gerado enorme controvérsia em Espanha, motivo para a presença constante do tema na comunicação social. Os opositores argumentam ser necessária uma nova cultura da água, que não aponte apenas para o líquido que sai da torneira ou passa no canal de rega, mas para uma visão ecossistémica, de enraizamento social e simbólico-cultural que valorize a água como recurso natural finito e ameaçado, capaz de aproximar as pessoas, gerar laços e estabelecer redes, ao mesmo tempo que reforça os valores ambientais e sensibiliza para a necessidade de protecção dos ecossistemas hídricos. Nessa proposta é reconhecida a importância das paisagens e das atividades lúdicas e instrumentais, seja a pesca, banhos, rega ou abastecimento público.

No Nordeste brasileiro é prematuro avançar com exemplos de injustiça ambiental, mas a falta de articulação entre a obra da transposição e o planeamento municipal antecipam algumas dificuldades. Por outro lado, é histórico o uso da água como elemento central de dominação e controlo social, razão pela qual João Abner Guimarães Júnior integra o debate na continuidade do clientelismo associado à indústria da seca, deslocado com a transposição para a indústria da construção civil. Guimarães Júnior acrescenta que o problema do Nordeste não é a falta de água, mas a falta de boa gestão e governança. Na mesma linha, João Suassuna receia que se esteja a usar dinheiro público para construir um ‘elefante branco’, incapaz de responder aos anseios da população nordestina e de promover o desenvolvimento regional.
Por último, o avanço rápido das alterações climáticas vem colocar alguns problemas a estas infraestruturas. Em ambas as geografias a situação hídrica atingiu um ponto em que as infraestruturas destinadas aos transvases podem, a breve trecho, não ter condições de resposta à função para a qual foram construídas. No caso do Tejo, vários jornais, através de reportagens ou pela mão de especialistas, têm feito eco do possível colapso do rio. Manifestando um problema semelhante, o rio São Francisco regista uma situação de grande carência de água, com impacto na agricultura irrigada de Petrolina e Juazeiro e na produção de energia em barragens como Sobradinho, o maior reservatório do Nordeste, que opera apenas a 4% da sua capacidade, pelo que deve ser suspensa a qualquer momento.

Em suma, pede cautela a construção de tipo de infraestruturas para o transporte de água de umas regiões para outras, ao gerar desequilíbrios no acesso e nos tipos de uso, sem sensibilizar para a escassez do recurso e para o valor ambiental, social e económico da água. Mas também por inverter os processos de governança, considerados apenas quando existe necessidade de legitimar decisões já tomadas. Não admira que estes empreendimentos estejam na origem de diversos conflitos socioambientais, opondo agricultores, empresas, populações afetadas e poder político. Não só por exporem situações de injustiça socioambiental, mas por necessitarem de elevados investimentos públicos, sem posterior usufruto coletivo, e por avançarem como a solução milagrosa para os problemas da seca de determinada região com base num pressuposto de abundância de água que não pode ser confirmada.
José Gomes Ferreira é investigador de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia através da bolsa com a referência SFRH/BPD/116662/2016. É ainda professor colaborador do Programa de Pós Graduação em Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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