Incêndios, Sensacionalismo e Invisibilidade: como os media ignoram as causas estruturais de Pedrógão Grande

Por: João Carlos Sousa

O incêndio de Pedrógão Grande, ocorrido em junho de 2017, foi um dos mais devastadores da história recente de Portugal, resultando na morte de 66 pessoas e na destruição de milhares de hectares de floresta. A tragédia capturou a atenção dos media portugueses durante duas semanas, com uma cobertura intensa que acompanhou o desenvolvimento da crise, os esforços de combate ao fogo e as consequências humanas e materiais. No entanto, um aspeto crucial ficou à margem do debate mediático: as causas estruturais dos incêndios florestais, como as alterações climáticas (AC) e a desertificação do interior rural português.

A Cobertura Jornalística: Emoção e Sensacionalismo

A análise de 427 notícias, publicada no artigo “Anatomia de uma Catástrofe Mediática: Pedrógão Grande e a política da invisibilidade,” revelou que a cobertura mediática seguiu um padrão trifásico. Nos primeiros dias, houve um foco intenso na descrição do desastre em si: imagens dramáticas, relatos de testemunhas e declarações de autoridades. Nos dias seguintes, a narrativa mediática deslocou-se para a identificação das vítimas e as consequências humanas, privilegiando um tom emocional e sensacionalista. Por fim, na última fase da cobertura, a atenção voltou-se para as responsabilidades políticas e jurídicas, deixando para trás qualquer aprofundamento sobre os fatores ambientais e sociais subjacentes à tragédia.

Figura 1 – Judite Sousa a realizar direto junto do corpo de uma das vítimas; Fonte: Captura de imagem do direto ocorrido no Jornal Nacional da TVI de 18 junho 2017

Este padrão de cobertura reflete um modelo de jornalismo de crise que prioriza o impacto imediato e a dramatização dos eventos, em detrimento da exploração das suas causas profundas. Como apontam estudos internacionais (cf. Houston et al, 2012; Crow et al, 2016; Lock et al., 2024), os media tendem a focar-se no que é visível e imediato, deixando de lado explicações estruturais que exigem mais contexto e análise especializada. Esta abordagem contribui para a superficialidade do debate público (Pantti e Wahl-Jorgensen, 2007) e limita a capacidade da sociedade de enfrentar desafios ambientais de longo prazo.

O Silêncio sobre as Alterações Climáticas e o Despovoamento Rural

Um dos aspetos mais preocupantes da cobertura mediática de Pedrógão Grande foi a ausência de uma discussão sobre as alterações climáticas (AC) e o despovoamento do interior rural português. Apesar do crescente reconhecimento científico de que os incêndios florestais estão a tornar-se mais frequentes e severos devido às AC, esta ligação raramente foi mencionada nas reportagens analisadas. Concomitantemente, a desertificação do interior e o abandono das práticas agrícolas tradicionais, que contribuem para o aumento da biomassa combustível, foram ignorados na narrativa mediática.

Os incêndios florestais não são apenas fenómenos naturais, mas também consequências de decisões políticas e económicas. O abandono do interior, a falta de gestão florestal e a crescente intensificação de eventos climáticos extremos criam condições ideais para a propagação de grandes incêndios. No entanto, ao concentrar-se quase exclusivamente nas consequências imediatas, a cobertura mediática negligenciou a necessidade de debater políticas públicas de prevenção e mitigação dos riscos associados aos incêndios.

Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. Estudos sobre a cobertura de desastres naturais noutras latitudes demonstram que os media frequentemente falham em contextualizar os eventos dentro de processos mais amplos, optando por um enquadramento que privilegia o imediato e o emocional. No caso português, esta abordagem reforça uma cultura de invisibilidade das questões ambientais e territoriais, dificultando a implementação de políticas eficazes para mitigar futuros incêndios. Sem uma compreensão pública abrangente dos fatores que contribuem para os incêndios, as transformações estruturais necessárias ficam relegadas para segundo plano.

Figura 2 – Carros carbonizados apanhados pelo incêndio; Fonte: Imagem divulgada pela edição da Revista Sábado de 24 maio de 2021

Outro fator importante é o impacto económico da falta de cobertura aprofundada. O turismo e a agricultura, setores essenciais para o interior do país, sofrem diretamente com a devastação dos incêndios. A ausência de um debate mais alargado sobre políticas de reflorestação sustentável, incentivo à agricultura regenerativa e reocupação do interior rural contribui para a perpetuação de um ciclo de abandono e degradação ambiental. Sem uma abordagem mais estruturada nos media, a tomada de decisões políticas fica à mercê da pressão mediática de curto prazo, sem respostas efetivas para problemas sistémicos.

O Papel dos Media na Transformação do Debate Público

A cobertura jornalística de crises como a de Pedrógão Grande tem implicações significativas na forma como o público e os decisores políticos percebem os riscos ambientais. Se os media não abordam as causas estruturais dos incêndios florestais, torna-se mais difícil gerar um debate informado e impulsionar as mudanças políticas necessárias. O papel dos jornalistas vai além de reportar factos: é também sua responsabilidade contextualizar os acontecimentos e contribuir para uma compreensão mais aprofundada dos problemas socioambientais.

Algumas iniciativas jornalísticas internacionais têm demonstrado que é possível abordar desastres naturais de maneira mais abrangente. Projetos de jornalismo de dados, por exemplo, têm explorado a relação entre incêndios ou inundações e AC, utilizando mapas interativos e análises estatísticas para ilustrar padrões e tendências. Um bom exemplo inclui as investigações do projeto “Boomtown, Burntown” da ProPublica. Estas iniciativas demonstram que uma abordagem mais aprofundada e baseada em dados pode ajudar a compreender melhor os incêndios e a tomar medidas eficazes para preveni-los.

Neste sentido, os media podem e devem desempenhar um papel educativo, informando a população sobre práticas de prevenção e adaptação às novas realidades climáticas. A comunicação de risco e a sensibilização para medidas de mitigação são fundamentais para reduzir o impacto dos incêndios. Jornalistas especializados em ambiente e ciência poderiam acrescentar valor à cobertura destes eventos, proporcionando uma análise mais informada e com menor pendor sensacionalista.

Outro aspecto relevante é o papel das redes sociais digitais na disseminação de informação. Embora os media tradicionais sejam fundamentais para a construção da agenda mediática, as redes sociais ampliam e moldam a forma como a informação circula e é percecionada pelo público. A rápida disseminação de imagens e vídeos pode reforçar a narrativa emocional e sensacionalista, mas também oferece oportunidades para um jornalismo mais colaborativo e investigativo. Projetos de fact-checking e análises aprofundadas podem contribuir para uma melhor compreensão dos fenómenos e incentivar o envolvimento cívico na mitigação dos riscos ambientais.

A tragédia de Pedrógão Grande expôs não apenas a vulnerabilidade do território português aos incêndios florestais, mas também as limitações da cobertura mediática em momentos de crise. Ao ignorar as causas estruturais do problema, os media contribuíram para a sua invisibilidade no debate público. Para que situações como esta não se repitam, é fundamental que o jornalismo adote uma abordagem mais crítica e contextualizada, ajudando a sociedade a compreender os desafios ambientais e sociais que enfrentamos. Com efeito, informar não é apenas relatar o que aconteceu, mas também explicar por que aconteceu e como podemos evitar que se volte a repetir.

A longo prazo, uma cobertura mediática mais informada pode incentivar alterações nas políticas ambientais e promover uma maior responsabilização dos governos e das empresas na gestão dos recursos naturais. Sem uma transformação na forma como os incêndios florestais são abordados pelos media, o risco de repetir tragédias como a de Pedrógão Grande continuará elevado. O jornalismo tem o poder de moldar narrativas e influenciar políticas públicas, e é crucial que esse poder seja utilizado de maneira responsável e construtiva. Só com agentes mediáticos comprometidos com a verdade e a informação objetiva poderemos evitar que a próxima tragédia se torne apenas mais uma manchete efémera.

João Carlos Sousa é doutorado em Ciências da Comunicação pelo Iscte-IUL com uma tese com o título “Sócrates e os “outros”: contributos para a compreensão do efeito mediático na confiança institucional” com bolsa individual da FCT (SFRH/BD/136605/2018). É licenciado em Sociologia (2009) e Mestre em Sociologia: exclusões e políticas sociais (2013) pela Universidade da Beira Interior. Foi bolseiro de investigação do projeto (A Matriz das) Atitudes Populistas e Negacionistas face à Ciência PTDC/CPO-CPO/4361/2021 no ICS-ULisboa. Joao.Carlos.Sousa@iscte-iul.pt

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