Sangram as águas, celebra o povo. Fé e festa no transbordar da barragem de Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte

Por: José Gomes Ferreira e Bertulino José de Souza

Na abordagem que temos feito sobre o valor eco-social da água, trazemos para análise A água e os sonhos, de Gaston Bachelard, e a proposta de Francisco Javier Martinez-Gil sobre os conceitos de fluviofelicidade e fluvioterapia. Relembramos, em Portugal, a centralidade da partilha da água na interação social gerada entre os habitantes de comunidades rurais e como primeiro instrumento de governança local. Outro exemplo é o das socialidades resultantes da ida à fonte, configurando-se como ponto de encontro da juventude em décadas anteriores. 

Culto das águas na América do Sul

O culto da água atravessa a história e o seu processo civilizacional. Rebeca Carrión Cachot, ao escrever sobre o culto das águas no Peru antigo, remete-nos para os deuses e lugares sagrados da cordilheira dos Andes. A área era essencialmente agrícola e o território inca deficitário em precipitação, pelo que a procura por água sempre foi uma preocupação permanente. Nesse sentido, foi construída uma rede de valas e canais, aquedutos, reservatórios, represas e outras obras de engenharia. Mas não foram estes os únicos elementos. As concepções religiosas e simbólicas características da civilização peruana incorporam novos elementos. A autora afirma que “Dentro de las jerarquías divinas ocupan prominente lugar los dioses del agua, de las lluvias, de las tempestades; se divinizan los fenómenos naturales, y ciertos cuerpos celestes siderales como la luna y el sol que personifican fuerzas favorables de la producción de la tierra, surgen pléyades de seres míticos y agentes de los dioses, a los que secundan en sus funciones benefactoras para con la humanidad. Se les reviste de atributos y símbolos sagrados que sirven de distintivos individuales, dentro del nutrido panteón aborigen” (p. 19).

No exemplo dos povos indígenas da Amazónia, António Porro, em O povo das águas. Ensaios de etno-história Amazônica, aborda as vivências e celebrações das populações ribeirinhas, por exemplo dos Omágua do alto Amazonas, que usavam os rios para navegação, pesca e agricultura de aluvião. O autor relata um episódio em que os indígenas associaram a turbidez das águas a castigo da natureza por estes não cumprirem uma promessa. António Carlos Diegues, em A imagem das águas, dá igualmente atenção aos povos ribeirinhos, destacando a “imbricação existente entre águas, rios e mares representativos de práticas sociais e simbólicas de comunidades pescadoras”.

Em 2018, o Fórum Mundial da Água e o Fórum Alternativo Mundial da Água, ambos realizados em Brasília, destacaram a relação destes povos com a água. Em reportagem, o Ciclo Vivo descreve como os rios são interpretados como membros das famílias indígenas, envolvendo uma relação de louvor e respeito para com a água passada de geração para geração desde os ancestrais.

Fé e seca no semiárido

No semiárido do Nordeste brasileiro, cujo fenómeno climático das secas temos estudado nas suas dimensões sociais, a possibilidade de boas chuvas e a sua chegada em grandes quantidades remetem igualmente para a veneração do simbolismo das águas. Identificamos três fenómenos em que tal acontece: i) na narrativa de resignação perante a seca face aos desígnios de Deus e na expectativa de que, vindo chuvas no dia de São José (19 de março), o ano vai ter boas colheitas, afirmando o povo que “Se não chover até o dia de São José, não chove mais”; ii) através dos chamados profetas da chuva, que se antecipam às previsões meteorológicas oficiais e sobre os quais se organizam eventos, não se limitando a olhar os céus para prever como vai estar o tempo no dia seguinte, mas lendo igualmente outros sinais – por exemplo, “Quando as formigas limpam o formigueiro, pondo a comida velha pra fora e trazendo comida fresca para dentro, é sinal de que estão se preparando para uma chuva”; iii) e no sangramento (escoamento do excesso de água armazenada) das barragens após chuvas intensas.

Figura 1. Lâmina de sangramento da barragem de Pau dos Ferros. Foto de José Gomes Ferreira.

O exemplo que trazemos é o sangramento da Barragem de Pau dos Ferros, do município com o mesmo nome, localizado no interior do estado do Rio Grande do Norte. A escolha resulta do interesse pelo tema, assim como de uma viagem realizada em maio de 2023, no momento em que a barragem estava cheia e a jorrar água pelo paredão, e do vínculo local com o Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. A grande visibilidade que o transbordar da barragem obteve é igualmente um motivo a destacar. 

Os vários dias em que se manteve a sangrar foram motivo de festa, com visitas sucessivas, com mergulhos espontâneos nas águas, muitas fotografias e vídeos partilhados, o que faz rememorar os conceitos de fluviofelicidade e fluvioterapia indicados por Martinez-Gil, na medida em que proporcionam um transbordamento de emoções na população local. O momento alto das celebrações ocorreu com a festa religiosa, a 7 de maio, que incluiu uma procissão com a imagem da Imaculada Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Pau dos Ferros. O sangramento surgiu em jornais de âmbito estadual, em blogues locais e regionais e nas redes sociais, designadamente no Instagram e Youtube, com reportagens a darem conta desse evento.

Tal como relata o perfil do Instagram #vivapaudosferros, na manhã de 7 de maio, os pau-ferrenses “acordaram cedinho, para juntos em uma grande motociata/carreata e procissão [seguirem] até à margem da Barragem de Pau dos Ferros em uma Missa de ação de graça pela sangria, após 14 anos (…). Um momento único, de fé, emoção e gratidão a Deus, Nossa Senhora da Conceição e a todos os santos”.

Essa descrição da fé revela e evidencia uma potência simbolizada na presença da água enquanto um dos elementos centrais na concepção Bachelardiana, além de inspirar/semear esperança, na medida em que incorpora no imaginário popular o sonho/desejo de ver o brotar das águas: ela anuncia possibilidades de uma nova realidade.

Figura 2. Panorâmica da barragem de Pau dos Ferros. Foto de José Gomes Ferreira.

Linhas para futuras pesquisas

Numa região que regista historicamente grandes períodos de escassez de água e conhece o impacto social do problema, a chegada das águas e o transbordar da sua principal barragem glorificam-na, atribuindo a Deus e à sua misericórdia merecimento dos homens bons, ao mesmo tempo que configuram o que Martinez-Gil conceptualiza como fluviofelicidade. Como ações futuras, pretendemos aprofundar a revisão da literatura sobre o tema e programar idas a campo que nos permitam saber mais sobre como as vivências da água atravessam a identidade regional, como influenciam as relações sociais e podem repercutir-se na definição e implementação das políticas públicas.

Figura 3. Estrada inundada pela barragem. Foto de José Gomes Ferreira.

José Gomes Ferreira realiza atualmente investigação de pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido (PLANDITES), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), campus de Pau dos Ferros, bolsa Fundação de Amparo e Promoção da Ciência, Tecnologia e Inovação do RN – FAPERN / Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Email: jose.ferreira@outlook.com

Bertulino José de Souza é professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, campus de Natal, atuando igualmente como docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido (PLANDITES). Email: bertulinosouza@uern.br

Comentar / Leave a Reply