Um CLAN para os Human-Animal Studies? Oportunidades e desafios para estabelecer esta área de estudos em Portugal

Por: Verónica Policarpo; Tradução de Filipa Soares

Parte 1

Três sociólogos conhecem-se numa conferência em Atenas

Em setembro de 2017, realizou-se o congresso da Associação Europeia de Sociologia, na lendária Atenas. Como me acontece frequentemente, a minha apresentação foi só no último dia do congresso, precisamente no último slot horário, no final de um dia muito quente. Sentindo todo o cansaço que nos invade depois de uma longa semana numa destas grandes conferências, e após uma noite sem dormir, dirigi-me ao local de manhã cedo. Já tinha olhado várias vezes para o programa do congresso, à procura de apresentações que tivessem a palavra “animal”, ou palavras afins, no título ou resumo. Encontrei apenas três, uma das quais ia ser exatamente no mesmo painel e no mesmo dia em que eu ia apresentar o meu trabalho, ainda para mais sobre um tema que me é muito caro: a morte e o luto por um animal de companhia.

Foi assim que conheci David Redmalm (na altura, na Universidade de Uppsala, e atualmente na Universidade de Malardalen, Suécia) e Nora Schuurman (da Universidade de Turku, Finlândia). Convidei ambos para um café e para conversarmos sobre a minha ideia de organizar uma escola de verão de Human-Animal Studies num futuro próximo. No início desse ano, em maio de 2017, tinha submetido um projeto sobre relações entre crianças e animais à principal instituição de financiamento portuguesa. Porém, naquele dia de verão, em Atenas, submersa na atmosfera quente, ruidosa e agitada da conferência, estava longe de imaginar o resultado dessa candidatura, que acabaria por ser bem-sucedida. Ali, estavam simplesmente três sociólogos com um amor e interesse especiais pelos animais a discutir colaborações futuras que pudessem transformar o seu interesse em algo que pudesse ser ao mesmo tempo divertido e útil para os próprios animais.

Forças emergentes: ligações, networking, financiamento

Nesse mesmo dia, Nora falou-nos de uma conferência sobre Human-Animal Studies (HAS) que teria lugar no ano seguinte, em Turku, na Finlândia. Depois, voltámos às nossas vidas agitadas e foi só em julho de 2018 que nos voltámos a reunir, em Turku.

Redes Internacionais, a HAS-Summer School e o Prémio da ASI: um Hub integrado na paisagem internacional dos Human-Animal Studies

Mas as coisas tinham mudado. Em maio de 2018, para minha surpresa, o projeto CLAN foi aprovado para financiamento, inaugurando uma nova fase no estabelecimento dos HAS em Portugal. De facto, este projeto seria, como o designei na sua conferência final, a pedra basilar do futuro Human-Animal Studies Hub (HAS-Hub). Depois da nossa reunião em Turku, e após o início do projeto CLAN, em outubro de 2018, voltei a contactar o David e a Nora para prosseguir o nosso plano de organizar uma escola de verão em conjunto.

A primeira edição da Human-Animal Studies Summer School teve lugar em Lisboa, em junho de 2019. A nossa oradora convidada foi Margo de Mello, na altura diretora executiva do Animals & Society Institute (ASI), que me informou sobre a possibilidade de nos candidatarmos ao prémio do Programa de Desenvolvimento Internacional de Human-Animal Studies do ASI — um prémio que visa apoiar a implementação e o desenvolvimento dos HAS a nível mundial, em regiões onde ainda não estão estabelecidos. Submeti a candidatura no final de 2018 e, em fevereiro de 2019, fiquei novamente surpreendida com a notícia de que tínhamos ganho. Este prémio foi uma peça central no estabelecimento dos HAS em Portugal, uma vez que trouxe reconhecimento internacional, em termos de financiamento e de redes. Contribuiu também para o reconhecimento da importância desta área de estudos na instituição anfitriã (ICS-ULisboa) e na academia portuguesa, em geral. Estes seriam dois pilares cruciais para o estabelecimento do HAS-Hub. O terceiro seria, evidentemente, os projetos que trariam tanto o financiamento como a expansão das redes.

Fig. 1: Capa do projeto que recebeu o prémio do ASI. Fonte: HAS-Hub.

Projetos basilares e linhas de investigação emergentes

O primeiro projeto a trazer um financiamento substancial ao Hub foi o CLAN – Amizades entre Crianças e Animais, que decorreu no ICS-ULisboa, entre outubro de 2018 e setembro de 2022. Financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, com um orçamento total de cerca de €240 000, permitiu a contratação de recursos humanos (doutorandos, investigadores juniores e seniores) e a subcontratação de diferentes serviços, tais como comunicação, branding, produtos e atividades de divulgação. A equipa júnior (dois doutorandos), sob a minha orientação, enquanto investigadora principal, foi também totalmente integrada na organização das várias atividades do Hub, que, por sua vez, contribuíram ativamente para a sua formação académica. O projeto também apoiou esses doutorandos na sua tese, fornecendo-lhes materiais teóricos e empíricos, bem como formação para a investigação. Tudo isto se encaixou perfeitamente numa sinergia dinâmica, embora complexa e muitas vezes sobrecarregada, entre o CLAN e o Hub. O CLAN foi, assim, a pedra basilar do HAS-Hub na sua fase inicial. Curiosamente, um projeto sobre a infância apoiou a infância do Hub.

Entretanto, outros projetos foram aprovados e trouxeram mais recursos para esta sinergia. Isto incluiu, por exemplo, o Liminal Becomings (o meu contrato do CEEC Individual), que financiou o meu salário e dedicação plena ao Hub e aos projetos com ele relacionados, ou uma bolsa de doutoramento, concedida ao primeiro investigador júnior do projeto CLAN. Cada uma destas oportunidades de financiamento abriu uma nova linha de investigação, que é, até ao momento, a principal marca do Hub: animais de companhia (projeto CLAN e bolsa de doutoramento) e animais em catástrofes (contrato CEEC). Em paralelo, funcionam outras linhas importantes, tais como os animais de produção e a transição para refeições de origem vegetal.

Fig. 2: Ilustração do projeto CLAN. Ilustração e design por Clara Venâncio, Projeto CLAN. Fonte: EXPOCLAN.

Por último, uma parte importante do trabalho dentro de cada projeto consiste em submeter mais candidaturas a financiamento para permitir a sua prossecução e a do próprio Hub. Foi assim que nasceu o projeto ABIDE – a partir de uma candidatura a uma Consolidator Grant do Conselho Europeu de Investigação, em 2021, uma das bolsas mais competitivas na Europa –, com o objetivo de explorar o que podemos aprender com os animais sobre a sua recuperação de incêndios catastróficos. Numa surpreendente ironia do destino, este projeto viria a ser aprovado para financiamento, em 2022, depois de ter sido recuperado da lista de reserva onde tinha ficado devido à falta de verbas. Com início em maio de 2023, este projeto poderá ser a próxima pedra basilar do HAS-Hub. Tal como a Consolidator Grant visa consolidar a carreira da investigadora que a recebeu, também o projeto ABIDE pode contribuir para a consolidação dos Human-Animal Studies em Portugal e no mundo lusófono, alicerçada no HAS-Hub como plataforma para a tornar possível.

Estamos, portanto, num limiar. Estaremos a transitar lentamente da fase inicial da “infância” para a fase de consolidação da “idade adulta”? Se sim, que papel é que essa transição desempenha para os Human-Animal Studies em Portugal e no mundo lusófono? Que riscos e oportunidades nos esperam neste processo? Quais são os principais problemas e obstáculos com que nos deparamos, e como os podemos ultrapassar? E que oportunidades inspiradoras nos esperam à esquina dos nossos esforços, dedicação e persistência? Mais importante ainda, onde estão os animais em tudo isto, e como os podemos apoiar? São estas as questões a que irei responder na Parte 2.

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Parte 2

Nos últimos quatro anos, o Human-Animal Studies Hub (HAS-Hub) juntou investigadores de diferentes áreas disciplinares e instituições com um interesse em comum: analisar, de um modo crítico, as múltiplas e sistémicas formas através das quais os humanos têm explorado os animais não-humanos, e um compromisso ético de contribuir para diminuir o seu sofrimento. Neste post, retomo a reflexão já aqui iniciada sobre este processo. Na primeira parte, debrucei-me sobre as forças que emergem a partir de redes e colaborações internacionais e sobre o papel central do financiamento para fomentar a investigação, formação e disseminação. Nesta segunda parte, pretendo destacar – e honrar – o poder de nos ligarmos e trabalharmos na nossa língua materna. Criar uma rede de Human-Animal Studies que fale (não só, mas também) português é um dos objetivos do HAS-Hub. Irei aqui demonstrar o papel da formação neste processo, em particular do curso pós-graduado Animais e Sociedade. Mas esta reflexão não terminará hoje. Numa futura terceira e última parte, destacarei quais são, do meu ponto de vista, os principais obstáculos com que o HAS-Hub se deparará num futuro próximo, bem como as oportunidades emergentes.

Redes nacionais e lusófonas: um Hub para o mundo lusófono

Um dos pontos fortes da candidatura do HAS-Hub ao prémio do ASI poderá ter sido o seu objetivo de conectar os que trabalham sobre os animais no mundo lusófono, estabelecendo ligações com colegas não só de Portugal, mas também do Brasil e da diáspora lusófona. A proposta visava também a construção de uma “casa” onde todos nos pudéssemos sentir ligados e apoiados, quebrando o isolamento que frequentemente assombra aqueles que trabalham nas margens da academia tradicional, para além de fronteiras disciplinares rígidas. Neste sentido, o Hub foi pioneiro na promoção dos Human-Animal Studies em português. Em alguns casos, os investigadores já trabalhavam nesta área há vários anos; noutros casos, juntaram-se para desenvolver um novo tema de investigação, nomeadamente como estudantes e investigadores juniores.

Para descrever como estas “potent connections” se começaram a desenvolver, deixem-me, primeiro, convidar-vos a regressarem comigo a um outro espaço-tempo. Desta vez, voltamos a Lisboa, em 2017.

Um biólogo convida uma socióloga para falar sobre o luto por animais companheiros

Em outubro de 2017, estava em Dublin quando recebi um e-mail de um colega biólogo a convidar-me para fazer uma apresentação num seminário que ele estava a organizar, sobre o processo de luto por perda de animais companheiros. Há já algum tempo que tinha apresentado a candidatura dos projetos CLAN e Liminal Becomings e, entretanto, tinha estado a refletir sobre o impacto da perda e do luto pela morte de animais – de companhia e outros, tais como os que vivem na natureza. O Ricardo R. Santos, defensor dos animais há muito tempo, estava então a trabalhar sobre bioética e luto e a colaborar com o Núcleo de Estudos do Luto do Hospital de Santa Maria. Porque as afinidades eletivas, de facto, existem, tornámo-nos amigos próximos e grandes aliados nos nossos esforços para estabelecer a área dos Human-Animal Studies em Portugal. O seminário, que teve lugar em março de 2018, marcou o início de uma parceria de longo prazo. Destaca também uma característica-chave do trabalho do Hub: a interdisciplinaridade.

Uma conferência em português

Mais tarde nesse ano, em conjunto com um colega da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, organizámos a primeira grande conferência sobre Human-Animal Studies em Portugal: Animais Companheiros nas Vidas dos Humanos.

Fig. 3: Poster da conferência Animais Companheiros nas Vidas dos Humanos

Esta conferência foi muito importante para assinalar a existência de investigadores, profissionais e defensores que trabalham nesta área, com e para os animais. O tema dos animais companheiros já estava em estudo em Portugal há muito, ainda que mais ou menos invisivelmente. Por exemplo, a Teresa L. Monteiro tinha apresentado, em 2016, um seminário no grupo de investigação LIFE do ICS sobre os encontros entre humanos e cães e o seu papel na vida familiar e, já em 2007, tinha coordenado o primeiro, se não o único (que eu saiba), inquérito académico sobre as perceções dos portugueses sobre os direitos dos animais. Como o programa da conferência mostra, os painéis temáticos e, principalmente, as comunicações livres incluíram um conjunto de colegas seniores e juniores a trabalhar sobre as relações humanos-animais. Foram vários os temas: desde a forma como os animais são representados e categorizados nos meios de comunicação social e em textos legais ou históricos, até à forma como vivem na cidade e no território, passando pelos animais em contexto familiar e trabalho social.

Assim, esta conferência também evidenciou a possibilidade de desenvolvermos uma comunidade de língua portuguesa em torno da própria área dos Human-Animal Studies. Foi, certamente, um marco na vida do Hub e uma chave importante para o estabelecimento de ligações potentes entre pessoas com os mesmos interesses. Permitiu criar novas parcerias de investigação e ensino, lançar novos tópicos de investigação e consolidar tópicos já existentes, tais como: o luto pela perda de animais, o lugar dos animais de companhia nas comunidades pessoais, em ambientes urbanos ou na vivência de doenças crónicas. Escrevemos sobre o papel especial desta conferência na constituição da área de estudos, num número temático da revista Análise Social.

Tudo isto está criticamente ligado à criação de um curso pós-graduado em Human-Animal Studies.

Fig. 4: Akira, Goya e Ana na praia. Fotografia do pai da Ana. Fonte: Arquivo do projeto CLAN.

Curso pós-graduado Animais & Sociedade

Pioneiro no seu foco sobre os Human-Animal Studies em língua portuguesa, este curso desempenha um papel fundamental na construção e consolidação desta área de estudos não só em Portugal, mas também no Brasil e noutros países de língua portuguesa. A primeira edição teve início em setembro de 2020, em plena pandemia, quando todas as aulas passaram a ser online. Embora todos tenhamos sentido isto, inicialmente, como uma limitação, acabou por permitir alargar o âmbito geográfico do curso, nomeadamente a estudantes do Brasil e docentes baseados no Brasil, nos Estados Unidos, em Cabo Verde ou na Bélgica. O curso é bianual e acaba de terminar a sua segunda edição (2022/23). É interdisciplinar no seu conteúdo, mas também na formação académica dos docentes e nas profissões dos estudantes: trabalhadores sociais, psicólogos, biólogos, etólogos, médicos, médicos veterinários, antropólogos, sociólogos… o âmbito é tão vasto como o seu interesse genuíno na “questão animal”. Do mesmo modo, também são vastos os tópicos dos ensaios finais: a situação interseccional dos animais e das mulheres, o resgate e os abrigos de animais, o lugar dos animais no desenvolvimento das crianças, a assistência aos animais e às crianças em lares de acolhimento, as intersecções entre o género e os animais de produção, e muitos mais. Esperamos, com expectativa, ver como estas reflexões, espoletadas pelo curso, se poderão desenvolver em projetos de investigação ou ser aplicados futuramente.

Fig. 5: Oscar. Fotografia de Henrique Tereno. Fonte: Arquivo do projeto CLAN.

Tendo-me debruçado sobre o papel do financiamento, das redes internacionais e da capacitação da investigação em língua portuguesa, não tenho mais espaço neste post para cumprir a promessa de refletir sobre os problemas e as oportunidades com que nos iremos deparar num futuro próximo. Estes serão o enfoque do terceiro e último post, onde também recordarei pelo menos alguns dos animais envolvidos connosco neste processo.

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Parte 3

Este é o último de três posts em que me propus refletir sobre as principais oportunidades e desafios subjacentes ao estabelecimento da área dos Human-Animal Studies em Portugal, bem como sobre o papel do Human-Animal Studies Hub (HAS-Hub) neste processo. Na primeira parte, destaquei a importância das redes internacionais e do financiamento. Na segunda parte, foquei-me na importância de nos conectarmos na nossa língua materna. Finalmente, neste terceiro e último post, discutirei brevemente os principais obstáculos que, do meu ponto de vista, o HAS-Hub poderá enfrentar num futuro próximo, bem como as oportunidades emergentes.

Problemas sistémicos e obstáculos: financiamento, recursos, desalento

Embora o caminho percorrido até agora pareça repleto de esperança e êxito, tem, contudo, vindo a ser constantemente assombrado pela precariedade que caracteriza a academia portuguesa e que afeta ainda mais aqueles que trabalham nas margens. Em primeiro lugar, manter tudo isto a funcionar sem problemas requer muito trabalho invisível, o qual está seriamente ameaçado pela falta de financiamento permanente, nomeadamente para cobrir custos com o apoio logístico a tarefas regulares, atividades em curso (seminários, grupo de leitura, cursos) ou eventos especiais (conferências, workshops). A falta de financiamento também afeta a qualidade e a quantidade da investigação, uma vez que os recursos humanos dependem exclusivamente de projetos, tanto sob a forma de bolsas de investigação como de contratos de trabalho. Isto significa que somos sempre muito poucos a fazer muito, por boa vontade. Os nossos horários estão normalmente sobrecarregados e estamos, muitas vezes, à beira do esgotamento. Tentamos fazer sempre um pouco mais, ir um pouco mais longe, uma vez que os animais precisam de nós. Mas esta falta de recursos atrasa-nos.

O tempo também é um constrangimento importante, no sentido em que temos de esperar que a geração mais jovem termine a sua formação. A primeira tese de doutoramento em Human-Animal Studies desenvolvida em Portugal será concluída dentro de alguns anos. Até lá, precisamos de nos preparar para ajudar esta nova geração a lidar com a escassez de oportunidades no meio académico em geral, e nos Human-Animal Studies em particular, com salários baixos e condições de trabalho precárias. Teremos de nos apoiar mutuamente perante o dilema de “arranjar um emprego que pague as contas” e ainda “estar nisto para os animais”.

Mais importante ainda, teremos de nos continuar a apoiar mutuamente contra o desânimo, ou mesmo esgotamento, que muitas vezes afeta aqueles que trabalham nesta área e/ou de perto com os animais e as suas vidas precárias. Não é nada fácil depararmo-nos diariamente com as condições deploráveis em que a grande maioria dos animais vive. O desânimo é frequente e, quando isso acontece, precisamos de estar lá uns para os outros. Só então poderemos estar lá para os animais. Precisamos de desenvolver uma pedagogia de “fierce compassion” – um termo usado por Linda Tallberg e outros para descrever uma abordagem ativista que passa por “testemunhar corajosamente, inquirir com empatia e incitar à ação positiva”.

Oportunidades inspiradoras e agendas de investigação

Isto significa também que, sob as nossas dificuldades, estão os nossos pontos fortes. O mais importante é um bem intangível, inestimável que junta os investigadores nesta área de estudos: o amor pelos animais. Sermos guiados por “algo maior que nós próprios” liberta-nos de fardos desnecessários e das complicações da personalidade e faz com que não desistamos, mesmo em tempos difíceis.

Os investigadores extremamente motivados que estão “nisto pelos animais” são, assim, centrais para a consolidação desta área. Isto aplica-se, antes de mais, a todos aqueles que estão a preparar as suas teses de doutoramentos. A própria ligação à formação pós-graduada também é, portanto, crítica. Por exemplo, o Henrique, antigo investigador do projeto CLAN, está agora a escrever a sua tese sobre a forma como as crianças percecionam e categorizam os animais através das suas práticas conjuntas. A Clara, uma ex-aluna da primeira edição do curso pós-graduado Animais & Sociedade e, mais tarde, investigadora e ilustradora do CLAN, iniciou o seu doutoramento sobre a prática de design mais-que-humano para uma coabitação interespécies.

A isto acresce a contribuição de investigadores visitantes, doutorandos e pós-doutorados, que trazem o seu próprio financiamento, acrescentando e expandindo a agenda de investigação do Hub com os seus conhecimentos e entusiasmo. As três investigadoras visitantes no Hub, durante o ano académico de 2022/23, estão a percorrer caminhos novos e entusiasmantes: Letícia Fantinel, investigando as práticas que envolvem não-humanos em organizações; Maria Saari, trabalhando no âmbito da educação ambiental, alterações climáticas e sustentabilidade multiespécie; e Janice Trajano, abordando a forma como as secas estão a moldar as relações humanos-animais.

Outro fator-chave é a ligação ao ativismo. Isto significa colaborar com ONG, instituições e movimentos de proteção animal e profissionais que trabalham no terreno. São disso exemplos a parceria do projeto CLAN com a Change for Animals Foundationpara organizar um workshop sobre bem-estar animal ou o protocolo do HAS-Hub com o Grupo Lobo. No futuro, isto pode significar a expansão para outros países de língua portuguesa, com o desenvolvimento de projetos centrados nas espécies, como o censo em curso de burros selvagens na Ilha da Boavista, Cabo Verde.

Onde estão os animais?

Concluirei dizendo que os Human-Animal Studies são, definitivamente, uma área onde ainda há tanto a fazer, devido ao enorme sofrimento animal por causas antropogénicas. Isto é, sem dúvida alguma, uma fonte de angústia. Mas significa também que ainda podemos fazer a diferença, pelo que esta é também uma área em que, sob as condições certas, podemos ocasionalmente converter o sofrimento em oportunidades de mudança social.

Nisto, trabalhamos para os animais, mas também trabalhamos e partilhamos as nossas vidas com eles. Os animais estão presentes no nosso trabalho de campo: todos os cães, gatos, tartarugas, peixes, coelhos e aves que conhecemos em famílias portuguesas, durante o projeto CLAN; os cães de rua da ilha de Faro, com a Teresa Monteiro; o lince-ibérico, com a Filipa Soares e a Andreia Grancho; as ovelhas criadas intensivamente ou as vacas nos matadouros, com o Rui Pedro Fonseca; os animais selvagens, de criação ou de companhia que se deparam com paisagens devastadas pelos incêndios, comigo, na minha futura etnografia para o projeto ABIDE. Com todos eles, aprendemos; por todos eles, lutamos.

Fig. 6: Coco. Fotografia de Henrique Tereno

Os animais também estão presentes no nosso trabalho como voluntários e defensores da causa animal. Estes são, por exemplo, os cães encontrados pela Maria num dos abrigos de Lisboa, as tartarugas que conheci em Cabo Verde, na Ilha do Maio, em 2021, ou o Mursi, o gatinho salvo das ruas pela Clara, agora membro da família multiespécie da nossa colega no ICS, Jussara.

Por último, os animais estão na nossa imaginação e dão vida à nossa criatividade. Estes são todos os animais capturados pela lente do Henrique, as ilustrações da Clara para a exposição do CLAN ou o conto fictício escrito por Becky Tipper, a partir dos dados do CLAN. Finalmente, os animais também partilham as nossas vidas e o nosso espaço doméstico: Reiko, com o Henrique, Tofu e Xica, com a Clara, Sissi, com a Letícia, Mostarda e Coco, comigo. A par de tantos outros, passados, presentes e futuros. Um CLAN para recordar e honrar.

Fig. 7: Mostarda. Ilustração de Clara Venâncio. 


Verónica Policarpo é uma investigadora na área dos Human-Animal Studies, com formação em estudos de comunicação e sociologia. Coordena o Human-Animal Studies Hub, no ICS-ULisboa, onde dirige o projeto CLAN, o Curso pós-graduado Animais e Sociedade e a International Summer School in Human-Animal Studies. A partir de maio de 2023, Verónica irá coordenar o projeto ABIDE – Animal Abidings: recovering from disasters in more-than-human communities (ERC Consolidator Grant).

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