Por: Joana Sá Couto
Perante as crises ecológica, económica, política e social em que nos encontramos, as dinâmicas da pesca têm vindo a ser alteradas de várias formas, aumentando a sua invisibilização e marginalização, refletindo e reproduzindo tensões históricas e produzindo novos desafios.
É neste contexto que foi mobilizado o conceito de trabalho enquanto mediador da relação humano/natureza, para esclarecer como os pescadores de Setúbal e Sesimbra manifestam o conhecimento local da natureza no seu dia-a-dia; e como este se alterou ao longo do tempo no quotidiano e como os pescadores interpretam as políticas de conservação da natureza impostas que influenciam a sua atividade.

Ilustração 1 Mapa com as localizações dos terrenos etnográficos – Sesimbra e Setúbal – e a área do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha. Fonte: Mapa pela autora, a partir do Google Earth.
Para responder a esta interrogação, optou-se pela etnografia, em Setúbal e Sesimbra, não só pela proximidade histórica entre as duas zonas, mas pela importância do caso do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha. Apesar desta proximidade, estes contextos apresentam importantes diferenças: Sesimbra, uma vila nos recortes da Arrábida de difícil acesso, é desde 2018 o maior porto de pesca do país em volume de pescado transacionado, é também um espaço urbano limitado e cobiçado por diferentes áreas económicas. Já Setúbal é uma cidade perto da capital, em rápido processo de gentrificação, com uma comunidade piscatória em reconhecido declínio e uma lota em rápida transformação, de que é exemplo a criação de um terminal de cruzeiros na doca dos pescadores.

Ilustração 2 A autora numa traineira, em processo de trabalho de campo após uma noite atribulada no mar. Fonte: a autora
Através da etnografia foi possível encontrar nos dois lugares um sistema cumulativo de contrariedades e resistências a diversos níveis.

Ilustração 3 Sistema de Contrariedades e Resistências encontradas nos pescadores de Setúbal e Sesimbra. Fonte: a autora
No que toca às questões do rendimento, este é o que mais se associa à incerteza inerente da pesca, uma vez que este depende se se vai ao mar, do que se pesca, quanto se pesca, e do que é vendido. O preço do pescado é determinado pelas regras de mercado num leilão decrescente que historicamente tem vindo a beneficiar o intermediário e não o produtor. Para contrariar esta incerteza, os pescadores criaram uma norma social para assegurar o pagamento de todos os trabalhadores de forma equitativa, o sistema de partes, assim como a distribuição do quinhão ao final do dia de pesca. Este sistema de partes apesar de apresentar alguns benefícios como o estímulo da produtividade e promoção da cooperação também reproduz uma hierarquia dentro do barco, colocando os armadores em vantagem, principalmente visto que são eles que tomam as decisões de como se reparte o que receberam.
Outra contrariedade são os trâmites processuais, que se referem não apenas às críticas sobre a pesada burocracia e fiscalização, mas à própria lentidão e pouca eficiência dos procedimentos necessários para ter um barco, por exemplo.
No que toca às políticas e mercados, perante o contexto de crescimento da economia azul, tem vindo a ser dada mais atenção a áreas económicas com maior potencial de crescimento, como o turismo e cruzeiros, o setor portuário, a aquacultura e as energias renováveis. Mesmo no setor da pesca, existe uma tendência geral para privilegiar a pesca industrial e a aquicultura em detrimento da pequena pesca.
Paralelamente, os pescadores são afastados dos processos de decisão no que toca à gestão da sua atividade e da gestão do espaço onde a praticam. Também a Política Comum das Pescas, que sentem ser uma imposição, é muito criticada por não corresponder às realidades locais.
Outro conceito que se mostrou central é o de ocean grabbing ou blue grabbing, que se refere à expropriação da pesca em nome da conservação, gestão ou desenvolvimento. Tem origem em formas de gestão e governança inapropriadas que comprometem as condições socioecológicas, podendo ocorrer devido a interesses públicos ou privados resultando numa maior marginalização das comunidades costeiras.
Através da expansão capitalista, foram os sucessivos processos de mercadorização que alteraram a pesca. Desde a mercadorização do peixe, que transforma uma atividade de subsistência numa atividade comercial, à própria mercadorização da força de trabalho humana. Um exemplo disso mesmo é a introdução da força de trabalho migrante na pesca como forma de colmatar a falta de mão-de-obra.
É o caso destes migrantes que são contratados de países africanos ou do sudeste asiático e que se encontram a viver em situações precárias no porto de abrigo de Sesimbra, mas também em condições de trabalho precárias, visto que a sua cédula marítima não é reconhecida e se encontram em vários dos barcos como observadores. Estes pescadores são bastante distintos daqueles pescadores pitorescos utilizados pelos municípios como símbolo da identidade e como atração turística, ainda que desfasada das realidades presentes.

Ilustração 4 Imagem do Porto de Abrigo de Sesimbra, 2023. Fonte: a autora.
Estes exemplos de contrariedades, aumentam o contexto de crise e desvalorização em que as comunidades piscatórias se encontram, o que nos denuncia como estes processos de mercadorização alteram a valorização do trabalho, e se sentem nas relações sociais e ecológicas presentes.
Ainda assim, os pescadores resistem. Estas resistências apresentam-se de diferentes formas, ainda que os pescadores possam não ver a sua resistência como tal. Porém, é através destas que os pescadores persistem e continuam a trabalhar no mar, mesmo apesar da sombra de declínio, apesar de alguns deles acharem mesmo que a pesca vai acabar, mesmo apesar de todas as contrariedades.
O mercado torna-se independente da relação metabólica entre humanos e natureza, dominando-a, impondo um novo sistema em que a natureza se torna uma mercadoria barata que se vende para acumulação de capital. Uma relação outrora de equilíbrio e troca, hoje pode caracteriza-se por uma degradação sem precedentes.
Argumento, assim, que a relação das comunidades piscatórias com a natureza está perante um tipping point, em risco de uma rutura metabólica.
A dissociação do humano e da natureza no raciocínio hegemónico e eurocêntrico, usada para justificar a dominação através de classe, raça, género e espécie, também permitiu uma desvalorização histórica do trabalho que seja manual, sujo, difícil, como a pesca, mas que é mediador indispensável da nossa relação com o ambiente.
Ao equacionarmos questões de justiça e direitos humanos na nossa análise, ao identificarmos as relações de poder, quem tem vindo a ser silenciado e quem tem vindo a ser priorizado nos discursos da economia azul, torna-se imperativo reavaliar as formas de governança destes recursos ancestralmente comuns, assim como formas de implementação de um novo paradigma económico e de gestão.
Até lá, os pescadores de Setúbal e Sesimbra continuam a resistir e a pescar, a partilhar conhecimento com quem os quer ouvir, no seu silêncio e humor, uma vez que, como me disse um pescador, “Enquanto houver pescadores, há peixe”.
Joana Sá Couto é antropóloga, doutorada pelo ICS em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, com a tese Ecologias do Trabalho da Pesca: uma etnografia com Pescadores de Setúbal e Sesimbra, defendida em julho de 2025. Está neste momento a trabalhar no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). j_sacouto@disroot.org
Obrigada por este artigo, que li com interesse.
Há diversos anos sou cliente do CABAZ DO PEIXE, da AAPCS – Associação de Armadores de Pesca Artesanal Centro e Sul -, uma iniciativa com base em Sesimbra com a colaboração da LPN, que assegurava (pelo menos aos olhos dos clientes como eu) a sustentabilidade da pesca que faziam. Recentemente (23/9/2025) foi-nos comunicado por e-mail que iria encerrar definitivamente, notícia que recebi com tristeza.
Alguma esperança de reversão desta situação ou perspetiva de surgimento de iniciativas como esta?
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