O Fim das Centrais a Carvão em Portugal: o bom, o mau e o que há a aprender

Por: Ricardo Moreira

O conceito de Transição Justa é considerado um princípio fundamental nas transformações para uma economia de baixo carbono. A ideia, que surgiu nos movimentos sindicais americanos nos anos 70 do século passado, busca garantir que trabalhadores e comunidades  não sejam deixados para trás à medida que indústrias com elevadas emissões de carbono passam pelo processo de phase-out. No entanto, como constatei no caso das centrais a carvão em Portugal, a realidade é muito mais complexa. O encerramento das centrais termoelétricas de Sines e Pego, em 2021, representou um momento significativo na transição energética do país, mas será que houve justiça nessas transições? Com base em entrevistas de campo e na análise de documentos oficiais, investiguei as implicações sociais, económicas e políticas dos encerramentos das termoelétricas para evidenciar os desafios de política pública e os problemas que os trabalhadores e as suas comunidades enfrentaram e enfrentam.

Portugal tentou descarbonizar rápido o que era mais simples

Em alinhamento com o Pacto Ecológico Europeu e o Acordo de Paris, o país definiu o fim do carvão na sua matriz energética, anunciando o encerramento da central de Sines até 2023 e da central do Pego até 2021. No entanto, este calendário foi adiantado e no meio da crise da Covid-19 ambas as centrais encerraram. As decisões de encerramento foram diferentes, mas resultaram na maior redução de emissões de gases com efeito de estufa da história de Portugal, servindo para demonstrar o compromisso do país com os objetivos climáticos. Mas, enquanto os decisores políticos e ambientalistas celebravam este marco, centenas de trabalhadores e as suas comunidades enfrentaram um futuro incerto.  

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Figura 1: Central termoelétrica a carvão de Sines, encerrada em 2021, Foto do autor

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Figura 2: Central termoelétrica a carvão do Pego, encerrada em 2021, Foto do autor

Quem decidiu e quem foi afetado

Uma Transição Justa é, acima de tudo, uma questão de governação—como as decisões são tomadas, quem é incluído e como os custos e benefícios são distribuídos. No caso de Sines e Pego, os encerramentos foram marcados por uma abordagem de cima para baixo, com diferentes atores “em cima” e a mesma classe de pessoas “em baixo”. Sines terá fechado porque a empresa de energia decidiu encerrar muito antes do previsto devido ao custo dos impostos verdes que o governo passou a implementar. Já a Central do Pego encerrou porque o governo não renovou a licença de produção de energia. Seja como for, as decisões-chave do governo foram tomadas sem consulta aos trabalhadores, sindicatos ou mesmo municípios. 

Para os responsáveis governamentais e os decisores europeus, o encerramento das centrais a carvão era um passo necessário na transição energética de Portugal. As autoridades enquadraram a mudança como uma transformação económica, uma “oportunidade”, em que as indústrias devem adaptar-se, os trabalhadores devem requalificar-se e as regiões devem reinventar-se. O Mecanismo de Transição Justa Europeu teria 60 milhões de euros para apoiar as regiões afetadas em Portugal, mas os atrasos no acesso a estes fundos deixaram muitos trabalhadores e comunidades sem apoio imediato. O discurso oficial enfatizava o otimismo em relação à liderança de Portugal na descarbonização, mas pouco reconhecia os impactos socioeconómicos imediatos: “ninguém fica para trás” – dizia o governo.

Presidentes de câmara e líderes sindicais têm outra versão. Embora reconheçam a necessidade de políticas de ação climática, criticaram a forma abrupta como os encerramentos ocorreram e a falta de um plano estruturado de transição. As economias locais que dependiam direta ou indiretamente das receitas do carvão sofreram um declínio acentuado. Em Abrantes, a central do Pego era o maior empregador e o seu encerramento criou o que uma entrevistada chamou o “Vale da Morte”—um período de estagnação económica sem alternativas de emprego imediatas.  

Os líderes sindicais entrevistados sublinharam que os trabalhadores mais vulneráveis, especialmente os precários subcontratados, foram os mais prejudicados pela transição. Muitos destes precários foram dispensados sem apoio, apesar do seu papel essencial nas operações das centrais. Na central de Sines os trabalhadores diretos foram realocados para outras funções ou para a reforma. No entanto, os subcontratados não tiveram as mesmas garantias, o que gerou um sentimento generalizado de desilusão com o processo.

As empresas energéticas posicionaram-se como facilitadoras da transição. Salientaram a importância das condições de mercado e da agenda europeia de descarbonização na definição das suas decisões. Embora em Sines a empresa tenha promovido programas de requalificação e recolocação para os seus trabalhadores, essas iniciativas não abrangeram todas as pessoas. No Pego, uma nova empresa de energias renováveis assumiu o ponto de injeção na rede elétrica, comprometendo-se a contratar antigos trabalhadores da central a carvão—mas, até ao momento, apenas uma pequena parte foi reempregada, refletindo os atrasos mais amplos nos projetos de investimento.  

O “Vale da Morte” da Transição

Um dos aspetos mais marcantes da eliminação do carvão em Portugal é o surgimento do que uma entrevistada chamou o “Vale da Morte”. Este termo refere-se ao período entre o encerramento das centrais e a materialização dos novos empregos verdes. O Mecanismo de Transição Justa foi concebido para colmatar esta lacuna, mas a sua implementação foi lenta e desigual. Muitos trabalhadores, a quem foram prometidos programas de requalificação, encontraram-se num limbo, à espera de investimentos que ainda não se concretizaram.  

Em Sines, o governo confiou em investimentos privados projetados—particularmente em hidrogénio verde e centros de dados—para absorver os trabalhadores deslocados. No entanto, estes projetos ainda estão em fase embrionária, deixando muitos trabalhadores subcontratados no desemprego. No Pego, face ao atraso dos apoios europeus, o governo criou um apoio ad hoc para garantir os salários para trabalhadores em formação.

Que lições do fim do carvão?

O caso português sublinha a necessidade de planeamento e governança das políticas de transição. Embora a ação climática seja essencial, a forma como as transições são geridas determina se exacerbam ou mitigam as desigualdades sociais. 

Sines e Pego fazem-nos reter três ideias:  

A governança da Transição Justa deve ser formalizada

A ausência de um quadro formal de governação excluiu trabalhadores, sindicatos, municípios e comunidades do processo de decisão. Seria importante criar um Comité de Transição Justa no âmbito do Conselho Económico e Social, para permitir um debate tripartido. Este comité deveria acompanhar os planos regionais de transição, garantindo que as comunidades afetadas tenham voz nas políticas climáticas.  

Só o planeamento evita o “Vale da Morte”

A lacuna entre o encerramento das centrais a carvão e a criação de novos empregos pode deixar muitos trabalhadores em situações precárias. As políticas climáticas devem incluir cronogramas para a requalificação, vias garantidas de emprego e acesso à proteção social. 

Os sistemas de Segurança Social têm de ter em conta a ação climática  

Os mecanismos existentes da Segurança Social não foram concebidos para acomodar mudanças industriais de grande escala, mas é lhes exigido que respondam a várias alterações no modo de trabalhar, desde a Inteligência Artificial à ação climática. Os trabalhadores enfrentaram perdas significativas de rendimento, com opções limitadas de apoio financeiro. No caso das políticas climáticas, é necessário equacionar a realocação de impostos verdes para o financiamento da segurança social, tornando-os resilientes e adequados para uma transição para uma economia de baixo carbono.

E então, foi justo?

À luz dos padrões estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a Transição Justa, o fim do carvão em Portugal não cumpriu os princípios de uma transição justa. Embora se tenham alcançado os objetivos ambientais, a falta de diálogo social, as alternativas económicas tardias e a proteção insuficiente dos trabalhadores ilustram os desafios na implementação das políticas de ação climática.

À medida que Portugal prossegue o seu caminho para a neutralidade carbónica, o caso de Sines e Pego pode servir de alerta. Estes casos destacam a necessidade de abordagens políticas integradas que priorizem tanto a sustentabilidade ambiental como a equidade social. 

Ricardo Moreira é doutorando do Programa de Doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. moreiraricardo@edu.ulisboa.pt

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