Soberania da terra em agro-territórios deprimidos e contestados: Portugal v. Brasil

Por: Lanka Horstink, Kaya Schwemmlein e Gabriela Abrahão Masson

Nota: por opção das autoras, este texto não segue o acordo ortográfico.

O presente post apresenta um resumo dos resultados de uma análise crítica comparativa das políticas fundiárias nos sistemas agro-alimentares de duas regiões rurais marginalizadas em dois países de continentes diferentes com uma história interligada: Portugal e Brasil. A apresentação completa dos estudos de caso e da análise da “qualidade de soberania da terra” pode ser encontrada aqui (em inglês).

Nos últimos anos, as finanças globais, a procura de recursos em sectores como a energia e alimentação e a necessidade de mitigar as alterações climáticas alteraram profundamente as agendas de desenvolvimento sustentável. Esta transformação trouxe desafios interligados, como a concentração de recursos e a monopolização de elementos essenciais, como a água, a terra, a energia e a agricultura (e.g., Dunlap, 2024). Investigadores, como Borras e Franco (2012) e GRAIN (2016), destacaram a natureza multifacetada destes problemas.

Figura 1. Estudos de caso. Fonte: Horstink et al., 2024.

A terra, nas suas várias dimensões (recurso, território, propriedade, identidade), tornou-se central no debate sobre a gestão e protecção de recursos essenciais. No entanto, está sob crescente contestação nos sistemas agroalimentares, sendo sujeita à colonização, mercantilização e financeirização. Este conflito é impulsionado por empresas transnacionais e governos estrangeiros que, à procura de lucro, exploram a terra para a produção agrícola em larga escala, a mineração e a energia verde (Nolte et al., 2016; Dunlap e Riquito, 2023).

Estas dinâmicas afectam os agro-territórios, onde a pressão sobre os recursos naturais é mais intensa. As comunidades rurais, que dependem directamente da agricultura, sofrem com a degradação ambiental e a perda de terras aráveis, o que intensifica a pobreza e a fome. Pequenos agricultores são particularmente afectados, especialmente no Sul Global, onde residem muitos dos mais pobres (World Resources Institute, 2005; FAO, 2017). As desigualdades entre o Norte e o Sul Global, bem como dentro das próprias regiões, estão a alterar as dinâmicas tradicionais, reflectindo a contínua apropriação de terras para elevados retornos financeiros (Roudart e Mazoyer, 2015; Li, 2014).

A resposta a esses desafios pode passar pela soberania da terra, definida por Borras et al. (2015) como o direito dos povos rurais a controlar e usar a terra de forma sustentável. Este conceito baseia-se na soberania alimentar, centrando-se nos princípios da agroecologia e desafiando a visão neoliberal da terra como mercadoria. Em vez disso, propõe que a terra seja vista como um recurso comum, a ser redistribuído de forma justa aos pequenos agricultores e trabalhadores rurais sem terra (Akram-Lodhi, 2021). Movimentos sociais e agrários têm promovido a soberania da terra como resposta à questão agrária não resolvida, que envolve a organização da posse e uso da terra em contextos históricos específicos (Stédile, 2005).

O presente estudo aplica uma análise crítica às políticas fundiárias em dois agro-territórios: Odemira, Portugal, e Triângulo Mineiro, Brasil, através da lente da soberania da terra. A pesquisa combina dados documentais com estudos qualitativos de pesquisa-acção, investigando as infraestruturas económicas, meios de produção e relações sociais locais com base nas teorias marxistas. O estudo pretende responder à seguinte pergunta: como é que a luta pela soberania da terra pode contribuir para sistemas agroalimentares saudáveis e justos em agro-territórios deprimidos e contestados?

Em Odemira, Portugal, a pesquisa envolveu entrevistas, oficinas e inquéritos com agricultores locais. No Triângulo Mineiro, Brasil, foram realizadas observações participantes, grupos focais e entrevistas com camponeses e movimentos de reforma agrária. Os resultados foram analisados utilizando uma matriz que avalia seis atributos:

1. Confrontação da questão agrária;

2. Respeito pela função social da terra;

3. Existência de reforma fundiária democrática;

4. Existência de um sistema agro-alimentar agroecológico;

5. Apoio do Estado para a reforma sustentável das políticas da terra e sistema alimentar;

6. Existência de uma sociedade civil activa.

Os principais resultados indicam que, tanto em Portugal quanto no Brasil, os sistemas fundiários favorecem a concentração de terras nas mãos de elites económicas, marginalizando pequenos agricultores e comunidades locais. Em Portugal, a concentração fundiária resultou da modernização agrícola e da integração no mercado global, que favoreceram a monocultura. Apesar de alguns movimentos sociais desafiarem este modelo, a distribuição desigual de recursos e a fraca protecção legislativa continuam a ser obstáculos. No Brasil, a concentração fundiária tem raízes coloniais, agravadas por políticas neoliberais recentes, que marginalizam comunidades indígenas e camponesas. Movimentos como o MST têm resistido a estas dinâmicas, promovendo a reforma agrária e a soberania alimentar através da ocupação de terras não produtivas, mas enfrentam violência e repressão por parte de latifundiários e corporações extractivistas bem como a criminalização da ocupação por parte do Estado (e.g., Araújo, 2017).

O conceito de função social da terra, que reconhece a obrigação de usar a terra para o bem comum, é pouco respeitado em ambos os países. No Brasil, embora esteja constitucionalmente reconhecido, a sua aplicação é limitada pelas políticas neoliberais. Em Portugal, o conceito teve uma breve relevância durante a reforma agrária dos anos 1970, mas foi gradualmente abandonado em favor de políticas que promovem a especialização e exportação agrícola em larga escala.

As reformas fundiárias democráticas são também limitadas, com a concentração da propriedade da terra a aumentar em Portugal e no Brasil, enquanto as políticas neoliberais favorecem grandes corporações. Contudo, em ambos os países, a sociedade civil desempenha um papel importante na luta pela reforma agrária e pela justiça socioecológica, mesmo que frequentemente marginalizada pelas políticas estatais. De notar que Portugal beneficiaria de uma visão mais holística a guiar as diversas lutas (e.g., monoculturas invasivas, projectos de mineração, mega-projectos de energia verde, etc.), o que podia ser conseguido ao reconhecer e aplicar o conceito da função social da terra.

Figura 2. Feira agroecológica numa parceria entre assentamentos rurais e a universidade. Fonte: Programa de extensão Fortalecendo Agricultura Camponesa em Uberaba (FACU).

A soberania da terra surge como conceito emancipatório, pois desafia a concentração fundiária e propõe a redistribuição justa da terra. A agricultura camponesa e agroecológica aparecem nos dois casos de estudo como um modelo resiliente, promovendo a justiça ambiental e social, bem como a segurança alimentar. Em ambos os países, pequenos agricultores e movimentos sociais estão a lutar pela soberania da terra, apesar das barreiras impostas por elites económicas e políticas neoliberais.

A nossa análise conclui que a luta pela soberania da terra é fundamental para a promoção de sistemas agroalimentares justos e sustentáveis. A redistribuição da terra, o respeito pela sua função social e a promoção da agroecologia são essenciais para revitalizar as áreas rurais e mitigar os impactos das alterações climáticas e da agricultura intensiva.


Lanka Horstink é socióloga, afiliada ao ICS-ULisboa. Trabalha nas áreas da economia política e ecologia política dos sistemas agro-alimentares, com ênfase na investigação e promoção de uma transformação agroecológica dos mesmos. O seu projecto mais recente foi a elaboração de um Diagnóstico Rural Participativo na região de Odemira. lanka.horstink@ics.ulisboa.pt

Kaya Schwemmlein é doutoranda no ICS-ULisboa no Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. Investiga actualmente os sistemas agro-alimentares, transições agrárias, soberania alimentar e agricultores na região do Alentejo Litoral. kaya.schwemmlein@ics.ulisboa.pt

Gabriela Abrahão Masson é Assistente Social e Pós Doutora pelo Instituto Superior de Serviço Social do Porto. Docente na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Brasil. Pesquisadora das áreas de questão agrária, políticas públicas e movimentos sociais. gabriela.masson@fsso.ufal.br

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