Por: José Duarte Ribeiro, João Moniz e Roberto Falanga
A democracia é, essencialmente, sobre a voz dos cidadãos. No entanto, à medida que as sociedades e estruturas políticas evoluem, surge também a necessidade de refinar os mecanismos pelos quais estas vozes são ouvidas e representadas. Nas democracias representativas contemporâneas, essa necessidade advém do acentuado problema da malaise na democracia, que pode ser simplesmente descrito como “um momento em que o ideal de democracia é amplamente amado, mas suas práticas são amplamente criticadas”. É precisamente na abordagem a esta crítica que o termo inovações democráticas surge, mais amplamente conhecido após a definição proposta por Graham Smith.
As inovações democráticas são, em resumo, teorizadas como formas abrangentes de participação cidadã que podem apresentar “curas” à referida malaise. Elas são consideradas fundamentais para promover e melhorar a participação política e cívica dentro dos sistemas democráticos. Estas inovações capacitam os cidadãos, envolvendo-os na discussão, formulação e implementação de políticas públicas, bem como na deliberação sobre questões públicas. Dryzek e Hendriks destacam que as inovações democráticas contribuem para o aumento da confiança e legitimidade políticas. Quando os cidadãos sentem que as suas vozes são ouvidas e que a sua participação é relevante, é mais provável que desenvolvam confiança nas instituições e processos políticos. A confiança, por sua vez, pode incentivar o contínuo envolvimento político dos cidadãos. Na verdade, esta ligação entre inovações democráticas e confiança dos cidadãos na democracia foi o alvo de uma conferência organizada no âmbito do projecto de investigação que apresentamos em seguida (ver também figura 2 no final).
No entanto, exemplos práticos de inovações democráticas, definidas por Graham Smith como instituições projetadas para melhorar a participação cidadã na tomada de decisões políticas, têm uma história muito mais longa do que o termo cunhado em 2005. Aqui, as inovações democráticas são um caminho conceitualmente mais estreito, resultante de uma trajetória histórica muito mais longa e antiga de participação cidadã na democracia. Descobrir essas ligações, contando a sua história, é um dos principais objetivos da primeira tarefa do projeto INCITE-DEM, liderado no ICS-ULisboa por Roberto Falanga, junto a uma equipa composta por Luís de Sousa, Pedro Magalhães, Annarita Gori, Lea Heyne e dois investigadores de pós-doutoramento contratados: João Moniz e José Duarte Ribeiro.

Figura 1. Logótipo do projecto Incite-Dem.
Antecedentes históricos das Inovações Democráticas
No início do século XX, poucos poderiam prever as fervorosas discussões sobre a teoria democrática que dominariam a segunda metade do século. As mudanças sociais das décadas de 1960 e 1970, marcadas pelos movimentos de base, deram origem a um intenso debate sobre o verdadeiro significado da democracia. Estas não se limitaram apenas aos Estados Unidos, espalhando-se também um pouco por toda a Europa. Os eventos que antecederam maio de 1968 levaram teóricos como Henri Lefebvre a enfatizar os direitos dos cidadãos nos espaços urbanos e a clamar por uma redistribuição mais ampla do poder.
Estes movimentos sociais encontraram respostas institucionais. Por exemplo, nos EUA foram introduzidas iniciativas como o Model Cities, do Presidente Lyndon Johnson’s War on Poverty, influenciado pelo crescente sentimento de que os cidadãos deveriam ter um papel mais direto na tomada de decisões.
Os académicos não ficaram atrás. Sherry R. Arnstein, no seu inovador Ladder of Citizen Participation, criou um espectro para avaliar a participação cidadã, que vai desde a não participação ao pleno poder. Na mesma época, Carole Pateman, em Participation and Democratic Theory, criticou a visão limitada da democracia como meras estruturas institucionais e processos de votação.
Enquanto as décadas de 60 e 70 foram fundamentais na revitalização da tradição participativa na teoria democrática, os desenvolvimentos das décadas seguintes focaram-se não apenas em inovações teóricas relacionadas com a deliberação, mas também na proliferação de novas práticas. Mais notavelmente, a explosão do Orçamento Participativo (OP) no Brasil e sua disseminação global. Inicialmente desenvolvido em Porto Alegre, Brasil, o surgimento desta inovação democrática está relacionado com a transição do autoritarismo para a democracia, combinada com a mobilização de movimentos sociais e reformas administrativas. O objetivo principal era trazer as comunidades marginalizadas para os mecanismos de decisão política. Em menos de uma década, Porto Alegre viu avanços infraestruturais notáveis e este sucesso levou à sua adoção global, facilitada por entidades internacionais como a ONU, Banco Mundial e OCDE. Na Europa, a “importação” do OP variou bastante, sendo em alguns lugares utilizado como mecanismo de transparência e modernização da administração, enquanto noutros, como em Espanha, procurava-se espelhar o design brasileiro, com ênfase nas desigualdades sociais.
Enquanto o OP ganhava tracção globalmente, a teoria democrática deslocou-se em direcção a uma “deliberative turn”. Deliberação, conforme definida por Dryzek, é um processo social no qual os indivíduos podem mudar suas opiniões através da interação isenta de coerção. Em contraste com outros métodos democráticos, como a votação, a deliberação enfatiza o papel da discussão. Dois conceitos fundamentais da democracia deliberativa são a ideia de Habermas sobre a esfera pública, um espaço para participação política fora dos limites do Estado e do mercado, e a noção de Rawls de razão pública, que se refere à base da relação política entre cidadãos e ao seu entendimento em democracia.
A “deliberative turn” é, podemos dizer, representada na prática através dos Mini-Públicos (MP), outra inovação democrática que envolve grupos pequenos e diversos para deliberar sobre questões específicas. Os MP, como assembleias de cidadãos, podem variar em design, mas partilham características comuns, como informação de especialistas e produção de recomendações para a formulação de políticas.
Questões e debates actuais
Atualmente, as inovações democráticas ocupam um lugar central no debate sobre o presente e futuro da democracia representativa, havendo um consenso na sua capacidade de ampliar a participação cidadã. No entanto, há também lugar para algumas divergências, notadas nas várias entrevistas que realizámos com especialistas da área. Por exemplo, enquanto a maioria das definições se centram no fortalecimento da participação cidadã, Thamy Pogrebinschi acredita que as inovações democráticas deveriam elevar o processo democrático em vez de simplesmente facilitar a participação.
A relação entre autoridades públicas e sociedade civil na implementação de inovações democráticas é também uma dimensão muito debatida, ressalvando-se a interdependência de processos de cima para baixo e de baixo para cima. Oliver Escobar salienta que os movimentos de base podem ser influenciados por interesses dominantes na sociedade civil, podendo haver manipulação. Brigitte Geissel sugere que o envolvimento não é binário: inovações democráticas iniciadas pelo governo podem ser inspiradas por ações da sociedade civil, como visto nas assembleias de cidadãos na República da Irlanda.


Figura 2. Cartazes dos dois primeiros eventos da série Democratic Innovations Seminar Series.
A sinergia entre autoridades públicas e sociedade civil é vital, com ambas a influenciar-se mutuamente. Com o objetivo de criar mudanças políticas impactantes, organizações da sociedade civil como a Extinction Rebellion estão estrategicamente a envolver-se em inovações democráticas. Também a ligação com temas de sustentabilidade social e ambiental é clara; especialistas como Graham Smith e Oliver Escobar defendem um envolvimento cidadão mais acentuado para enfrentar desafios globais como as alterações climáticas. As inovações democráticas são vistas não apenas como ferramentas, mas fundamentais para re-imaginar processos democráticos e abordar questões socioecológicas globais.
Por fim, um ponto marcante sobre inovações democráticas e a melhoria da democracia foi expresso por Mark Warren no âmbito de uma série de seminários (cujo primeiro evento já pode ouvir em podcast aqui) que está a ser organizada pela nossa equipa no ICS.
Para Warren, as pessoas não se querem livrar da democracia representativa, o que elas querem é uma democracia representativa que funcione melhor. As inovações democráticas assumem aqui um papel fundamental.
José Duarte Ribeiro concluiu recentemente o seu doutoramento em Sociologia na Middle East Technical University (METU), em Ancara, Turquia. Conta com investigação em Portugal e na Turquia na área da sociologia rural e movimentos sociais. É investigador de pós-doutoramento no ICS-ULisboa no projecto europeu Incite-Dem.
João Moniz concluiu recentemente o seu doutoramento em Ciência Política pela Universidade de Aveiro e o seu percurso profissional conta com várias participações em projetos de investigação, tanto a nível nacional como internacional. É investigador de pós-doutoramento no ICS-ULisboa no projecto europeu Incite-Dem.
Roberto Falanga é Investigador Auxiliar no ICS-ULisboa, trabalha sobre processos participativos e deliberativos nas políticas públicas. É investigador principal no ICS-ULisboa dos projetos europeus Incite-Dem, Infrablue e, brevemente, INSPIRE.