Um lugar à sombra nas práticas de adaptação às alterações climáticas

Por: Ana Horta

Quando, no verão passado, descobri que um dos toldos do meu terraço tinha começado a rasgar-se num canto depois de uma ventania, percebi que já não podia adiar mais a sua substituição. Foi então que, ao telefonar a uma empresa a pedir um orçamento, tive uma agradável surpresa ao ouvir dizerem-me, do outro lado da linha, que este ano estavam a receber muito mais pedidos de orçamento por dia do que alguma vez tinha acontecido. Pareceu-me que este poderia ser um indício de mudança nas práticas de arrefecimento das casas em Portugal.

Viver numa casa demasiado quente no verão é um problema que afeta uma grande parte da população. Num inquérito do Eurostat realizado em 2012, 35.7% dos portugueses responderam que viviam em habitações que no verão não eram suficientemente frescas (a segunda proporção mais elevada da União Europeia, a seguir à Bulgária). E, em 2018, numa investigação em que realizámos 100 entrevistas a portugueses residentes em dez localidades espalhadas pelo país, encontrámos 64 casos em que os entrevistados referiram que a sua casa costumava ser quente ou muito quente no verão.

Viver numa casa demasiado quente pode afetar não apenas o bem-estar e a qualidade do sono, mas também a saúde. Tal como tem alertado a Organização Mundial de Saúde, a exposição ao calor em excesso provoca stress térmico e desidratação e pode estar relacionada com o agravamento de doenças cardiovasculares, respiratórias, renais e distúrbios eletrolíticos.

Um problema enraizado na sociedade

Há segmentos da população mais expostos a este problema do que outros. Como diz a Agência Europeia do Ambiente, os habitantes das cidades são mais vulneráveis devido ao efeito de ilha de calor (um fenómeno que decorre do modo como edificámos as nossas cidades, uma vez que a estrutura urbana, os materiais utilizados e as paisagens construídas fazem aumentar as temperaturas e reduzem o arrefecimento noturno), sendo que geralmente são os grupos com mais baixos níveis socioeconómicos que vivem nas zonas mais densas das cidades e em habitações com menor qualidade de construção, tendo também mais dificuldade em recorrer a equipamentos de arrefecimento das casas. Os mais velhos são também especialmente vulneráveis devido a uma acumulação de fatores. Além de terem a sua capacidade de termorregulação enfraquecida devido ao envelhecimento e de tenderem a sofrer de doenças crónicas e de demência, tendem também a depender dos cuidados prestados por outros e vivem muitas vezes isolados, com baixos recursos económicos e em habitações a necessitar de reabilitação.

O modo como temos vindo a construir os nossos edifícios nas últimas décadas, associado a tendências arquitetónicas, regulamentações existentes (ou a sua desadequação), dinâmicas do mercado imobiliário, valores e aspirações sociais, costumes e outros fatores, contribuiu para esta situação em que tantos portugueses estão privados de viver em casas em que possam refugiar-se do calor. Como mostram os dados do Eurostat, sendo este um problema que afeta sobretudo os que têm rendimentos mais baixos, não deixa de se estender a toda a sociedade (vide Figura 1).

Figura 1. População portuguesa a viver em habitações insuficientemente frescas no verão por quintil de rendimento, 2012 (%). Fonte: Eurostat.

As ondas de calor no horizonte

Não é novidade nenhuma que as alterações climáticas nos trazem um aumento das temperaturas médias, assim como mais frequentes e intensas ondas de calor. Segundo a Agência Europeia do Ambiente, o número de europeus expostos a elevadas temperaturas deve aumentar devido à crescente urbanização, ficando assim mais pessoas sujeitas ao efeito de ilha de calor das cidades. Deste modo, se não forem tomadas medidas de adaptação, os efeitos nocivos da exposição ao calor deverão agravar-se.

Entre as medidas propostas pela Agência Europeia do Ambiente estão a existência de sistemas de alerta que possam desencadear atempadamente respostas por parte das autoridades e dos restantes atores sociais. Outra medida consiste no incremento da vegetação urbana, dado que as plantas ajudam a baixar as temperaturas nas cidades através da evapotranspiração, sombra e menor absorção do calor. A incorporação de mais árvores e outras plantas nas cidades tem ainda outros benefícios para o ambiente e o bem-estar das populações, como mostra um outro relatório. Outra medida proposta – e que me leva de volta ao início deste post – consiste em intervenções no ambiente construído de modo a aumentar o sombreamento.

Como o meu terraço está muito exposto ao sol e tenho dois toldos ao longo dessa parede, sei por experiência própria como o sombreamento é eficaz na diminuição da temperatura dentro de casa. E qualquer um de nós sabe a diferença que faz andar na rua com ou sem árvores (ou mesmo trepadeiras – vide Figura 2) num dia quente.

Figura 2. Sombra proporcionada por uma latada de videiras numa rua de Mértola. Foto: Ana Horta (2023).

Mesmo a tempo de evitar uma má prática

Numa sociedade de consumo que valoriza tanto a tecnologia, tende-se a pensar que a solução para o excesso de calor em casa passa pela instalação de ar condicionado. Os dados do Eurostat mostram que, entre 2018 e 2021, o consumo de eletricidade para arrefecimento dos espaços aumentou significativamente na União Europeia, sendo que nalguns países, como a França, a Holanda ou a Bélgica, houve aumentos muito expressivos. Também em Portugal o consumo de energia associado ao arrefecimento das habitações aumentou neste período, embora ligeiramente. No entanto, a opção pelo ar condicionado é problemática, não só por assentar no consumo de energia, mas também por contribuir para acentuar o efeito de ilha de calor das cidades. Como diz a Organização Mundial de Saúde, a difusão do ar condicionado é um exemplo claro de uma má adaptação às alterações climáticas.

É assim muito positivo o interesse aparentemente crescente dos portugueses pelo ensombramento. Sendo o mais eficaz o que é feito no exterior da habitação, o que pode não ser possível em todos os casos devido à regulamentação existente, seria desejável eliminar esses entraves.

Não poderia terminar sem dizer que no dia 25 de outubro serão apresentados ao público os resultados do projeto Saúdes, que se centrou nos riscos que as alterações climáticas colocam à saúde dos portugueses, entre os quais os que estão associados às ondas de calor.


Ana Horta é investigadora auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do grupo de investigação SHIFT. Faz parte da equipa de coordenação da Secção Ambiente e Sociedade da Associação Portuguesa de Sociologia e da comissão executiva da Research Network 12 – Environment and Society da European Sociological Association.

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