Por: Sónia Alves
As area-based initiatives (iniciativas de base territorial) estão bem documentadas e debatidas na literatura, contando já com mais de quatro décadas de financiamento por parte de governos locais e nacionais, bem como da União Europeia.
A lógica subjacente a estas iniciativas é que, embora os problemas da pobreza e da desvantagem socioespacial não estejam confinados às áreas em desvantagem, o modo como estes se concentram e se interligam nessas áreas podem gerar espirais negativas de declínio que ameaçam não só a coesão social e urbana, como uma mobilidade social descendente da população residente, sobretudo a mais vulnerável.
Embora as intervenções dirigidas às áreas urbanas em crise possam variar substancialmente em termos de duração, escala, contextos urbanos ou mesmo estratégias de intervenção, elas tendem a ter em comum o foco na melhoria das condições internas dos bairros (em desvantagem). A intervenção tende a focar-se na melhoria das condições do ambiente físico construído (oferta de habitação, desenho urbano, espaços públicos e mobilidade), da composição social e funcional (a última relacionada com a qualidade do comércio e dos serviços de proximidade) e da imagem ou reputação associada à área.
Tendo estado envolvida na avaliação de iniciativas de regeneração urbana no âmbito de programa europeus como o URBAN II (2000-2006) na cidade do Porto (para mais detalhes, ver Alves 2001, 2017) – sobre as quais concluí, com frustração, que o modo como as intervenções são formuladas e executadas podem inclusivamente contradizer os próprios objetivos para que foram criadas –, foi com muita satisfação que, observei na cidade dinamarquesa de Aalborg, no âmbito de um projeto de investigação europeu, como uma associação sem fins lucrativos (Himmerland Boligforening), em colaboração com a população residente e um leque diversificado de atores (com e sem fins lucrativos), foi capaz de transformar uma área monótona e desfavorecida numa área atrativa e diversa (ao nível do stock de habitação, bem como da composição social e funcional).

Neste texto, reflito brevemente sobre o modelo de Aalborg Øst, relacionando-o com o contributo do projeto DASH – Deliver sAfe and Social Housing na disseminação de boas práticas e soluções que respondam aos desafios da atualidade relativamente ao envelhecimento da população e habitação, à promoção de habitação a preços acessíveis, à regeneração dos territórios em desvantagem e à promoção de estratégias de desenvolvimento urbano sustentável.
O projeto de investigação DASH (2023-2026) envolve o poder local, as associações de habitação e as universidades de quatro países: Alemanha, Dinamarca, Portugal e Sérvia. No total são doze instituições que acreditam no valor acrescentado da colaboração e da aprendizagem interdisciplinar, intersectorial e transnacional para a criação de uma nova geração de modelos de habitação baseados não só em mais evidência empírica e conhecimento teórico, como na ambição de criar cidades mais inclusivas, acessíveis, seguras e sustentáveis.

Uma parte das atividades do DASH é dedicada à transferência de conhecimento e de soluções inovadoras que podem ser replicadas noutras cidades europeias. É neste contexto que ganha relevância refletir sobre o modelo de Aalborg Øst, notando como se assemelha a uma construção de tipo LEGO em que várias peças se vão encaixando de forma orgânica.

A história da construção de habitação em Aalborg Øst desenvolveu-se em várias fases entre 1967 e 1982. A associação de habitação sem fins lucrativos Himmerland Boligforening, que detém cerca de 7000 unidades de habitação na cidade, concentra cerca de metade nesta área. Em 2008, esta associação decidiu inverter a tendência de declínio evidenciada, ao nível de uma crescente concentração de famílias vulneráveis com pouco poder de escolha no mercado de habitação e do encerramento de estabelecimentos comerciais, e investir na melhoria das condições do bairro.
O plano começou em 2008 com a demolição de três blocos residenciais para a criação de um centro médico e um cultural. O plano foi desenvolvido em diálogo com os representantes do município, com investidores privados, associações sem fins lucrativos e com os residentes do bairro, tendo sido votado e aprovado por estes últimos por uma grande maioria. O trabalho voluntário de parceria e a abordagem holística, integrada e centrada nas pessoas valeu à associação Himmerland Boligforening o prémio European Bauhaus que, como tem sido sublinhado por Ursula von der Leyen, premeia projetos de esperança (project of hope).

O quadro seguinte procura sistematizar como, a partir dos objetivos de densificação, renovação da habitação existente e do espaço público, foi possível contribuir para uma estratégia de transformação do bairro, que promoveu várias dimensões da sustentabilidade.
| Dimensões | Objetivos para a sustentabilidade | Medidas e resultados |
| Económica | Criação de novos equipamentos e emprego, com vista à redução das desigualdades socioeconómicas | Foi criado um equipamento de saúde com oferta pública e privada variada que atrai pessoas de várias origens ao bairro Foi criado um equipamento cultural com biblioteca, auditório, workshops e um Fab Lab de última geração. Apoio à fixação de novo comércio (mercearias, cafés e um restaurante) Aumento dos níveis de escolaridade da população residente Redução da proporção de beneficiários do subsídio de desemprego |
| Física | Transformação de uma estrutura e arquitetura de habitação monótona numa mais diversificada, com base na construção de nova habitação (para arrendamento no mercado livre), reabilitação e adaptação da habitação sem fins lucrativos existente Contribuir para a redução de pobreza energética dos edifícios e para a descarbonização Melhoria dos espaços públicos e da infraestrutura de mobilidade Criação e melhoria de espaços desportivos | A Himmerland Boligforening vendeu lotes de terreno para a construção de 73 novos fogos de arrendamento para o mercado privado O stock de habitação sem fins lucrativos passou de três tipos de habitação para 30. Por exemplo, uma casa de três divisões passou a poder ter uma área entre 65m2 e 110m2 para poder corresponder a diferentes orçamentos familiares Uma grande parte das habitações foi também tornada acessível a pessoas com mobilidade reduzida (seniores e pessoas com deficiência motora) Os parques e áreas verdes foram melhoradas, bem como o desenho urbano para utilização de bicicletas. Foi introduzida a circulação de um autocarro elétrico para apoiar cidadãos com mobilidade reduzida |
| Social | Inclusão dos residentes no processo de transformação do bairro – incluindo nas decisões relacionadas com a renovação da habitação, incubação e criação de novos produtos e serviços | Perfil socioeconómico mais diversificado, com um aumento do rendimento médio das famílias em 33% Aumento dos níveis de escolaridade da população jovem Redução de criminalidade |
| Ambiental | Redução dos riscos ambientais, seguindo-se os princípios da prevenção e da precaução ambiental Remoção de obstáculos para melhorar a conexão e a acessibilidade à área | Foram introduzidas soluções inovadoras do ponto de vista ambiental (sistemas solares e de recuperação da água das chuvas, controlo digital e monitorização do consumo de energia, etc.) Redução de consumo de energia |
A transformação da área de Aalborg Øst foi possível graças a um notável investimento em colaboração e diálogo que construiu pontes entre os peritos técnicos e os peritos da vida quotidiana (inquilinos), para os quais foram sendo encontradas soluções concretas e adaptadas às suas necessidades e preocupações. O sucesso da transformação de Aalborg Øst, e, no geral, o sucesso de processos de regeneração urbana que se baseiam em renovação e densificação do stock de habitação, depende da capacidade de conciliar os interesses e expetativas dos residentes antigos com os novos residentes, com benefícios para todas as partes envolvidas.
Figura 5. Aalborg Øst – espaço publico e habitação. Autor: Dejan Doljak, agosto 2023.
Sónia Alves é licenciada em Geografia (FLUP – Universidade do Porto, 1997), mestre em Planeamento e Projeto do Ambiente Urbano (FAUP e FEUP, Universidade do Porto, 2002) e doutorada em Sociologia (ISCTE, 2011).
A sua investigação e principais publicações centram-se nas áreas da geografia social, sociologia urbana, urbanismo e política de habitação. Os principais temas da sua investigação incluem a relação entre planeamento e habitação, nomeadamente o modo como o planeamento do território pode contribuir para promoção de habitação social e acessível, mitigando tendências de segregação socioespacial.


