Depois do Fogo: Repensar a Educação para o Fogo a partir dos Desastres Lentos e dos Riscos Quotidianos

Por: Ana Sofia Ribeiro

Em junho e outubro de 2017, o centro de Portugal foi palco de dois dos mais devastadores incêndios rurais da sua história recente. Mais de 115 pessoas perderam a vida, milhares de animais morreram e vastas áreas de floresta e terreno agrícola foram consumidas pelas chamas. Estes acontecimentos transformaram-se num trauma nacional, expondo a fragilidade dos territórios rurais, os limites dos sistemas de resposta de emergência e os profundos desequilíbrios sociais e ecológicos acumulados ao longo do tempo.

Contudo, por mais que esses incêndios se tenham manifestado como catástrofes súbitas, foram também o resultado de um processo de negligência prolongada da gestão do território, da política florestal e das próprias condições de vida quotidiana das populações que habitam em regiões propensas ao fogo. Esta dupla temporalidade (o momento dramático do desastre e os processos lentos que o possibilitam) enquadra a minha investigação recente sobre educação para o risco de incêndio e sobre as experiências de crianças em comunidades afetadas pelos fogos de 2017, em Portugal.

Crianças, Jovens e as Lacunas da Educação para o Risco

Em Portugal, a educação para o risco encontra-se formalmente integrada na componente de Cidadania e Desenvolvimento do currículo nacional, na sequência do referencial de educação para o risco, lançado em 2015. Este enquadramento procura promover a consciência em torno da proteção civil, da preparação e dos comportamentos de autoproteção entre os alunos. A nível local, as escolas e os municípios colaboram frequentemente com corporações de bombeiros voluntários, forças de segurança e a Cruz Vermelha Portuguesa na organização de simulacros e campanhas de sensibilização.

Todavia, estas iniciativas são intermitentes e distribuídas de forma desigual. Tendem a reproduzir um modelo tradicional e vertical de comunicação do risco — centrado na transmissão de informação sobre perigos, em vez de fomentar a reflexão sobre vulnerabilidade, cuidado e preparação comunitária. Como revelaram várias investigações, as crianças e os jovens raramente são considerados participantes ativos naredução do risco de catástrofe. As suas perspetivas, receios e saberes informais permanecem em grande medida invisíveis nas narrativas institucionais de resiliência.

As corporações de bombeiros voluntários proporcionam uma forma paralela de educação cívica. Através das escolas de infantes e cadetes, crianças entre os 6 e os 16 anos aprendem noções de primeiros socorros, técnicas básicas de combate a incêndios e princípios de serviço cívico. Estes programas envolvem centenas de jovens em todo o país e oferecem espaços de pertença, responsabilidade e envolvimento público.

Para compreender o significado da educação para o desastre para além dos enquadramentos políticos e institucionais, procurei escutar as crianças que viveram os incêndios de 2017, através do contacto com uma destas escolas de infantes e cadetes. Os seus testemunhos revelam que, para muitos, o fogo não foi uma ameaça abstrata, mas sim uma experiência vivida e sensorial — marcada pelo medo, pela confusão e por formas improvisadas de agência.

Figura 1. Trabalho de campo, 1 fevereiro 2020, ação de reflorestação. Foto: Autora,.

A Rita, de 13 anos, recordou como ela e a avó molharam a terra em redor da casa para manter as chamas afastadas, observando as cinzas a caírem sobre as ovelhas do vizinho. A Joana, então com 14 anos, descreveu como a sua família combateu o avanço do fogo com baldes de água, depois de as mangueiras terem ardido. Estas não são histórias de vítimas passivas, mas de crianças e jovens que enfrentaram o perigo com a coragem de quem luta pela vida.

Para outras, o período pós-incêndio foi igualmente marcante. Um cadete dos bombeiros voluntários relatou como um colega deixou de frequentar os treinos durante meses, assombrado pelo medo de perder o tio bombeiro. A corporação local acabou por solicitar o apoio de uma psicóloga para acompanhar crianças e pais – um reconhecimento raro de que a recuperação é tanto emocional como material.

Através destes relatos, o fogo emerge como um acontecimento intensamente social e intergeracional. Reconfigurou rotinas familiares, esbateu fronteiras entre brincadeira e responsabilidade e gerou formas de conhecimento experiencial raramente reconhecidas pelos sistemas formais de ensino.

As Escolas e o Trabalho Lento da Recuperação

A educação formal e não formal desempenha um papel central na restauração de um sentido de normalidade após os desastres. Os professores e animadores juvenis com quem falei descreveram o trabalho delicado de “juntar toda a gente”, protegendo os mais novos enquanto se criavam espaços para que os mais velhos pudessem partilhar memórias e formular perguntas. Algumas escolas organizaram atividades de reflorestação ou limpezas coletivas — gestos simbólicos que procuravam religar os alunos à paisagem e entre si.

No entanto, as próprias crianças tendem a perceber poucas mudanças. Como afirmou o Luís, de 14 anos: “Houve algumas iniciativas, mas depois acabou… as pessoas esqueceram o que aconteceu.” As suas palavras ecoam um cansaço mais amplo observado nas comunidades pós-incêndio — uma sensação de que, apesar das comemorações e reformas políticas, pouco se alterou na forma como o risco é vivido e partilhado.

O Eduardo, de 12 anos, foi ainda mais direto: “As pessoas são muito… só pensam nas coisas depois de elas acontecerem. Não sabem preparar-se. Porque quando uma coisa acontece dizem sempre «podíamos», não dizem «vamos fazer»… Não sabem lidar com o que pode acontecer, porque é sempre uma possibilidade”. A sua crítica remete para uma condição coletiva designada por “desastre lento” (slow disasters): a normalização quotidiana da negligência, da desigualdade e do desinvestimento que torna certos lugares perpetuamente vulneráveis.

Desastres Lentos e as Políticas do Cuidado

O conceito de desastre lento, inspirado na ideia de “violência lenta” de Rob Nixon, desafia a noção de desastre como acontecimento súbito e excecional. Em vez disso, chama a atenção para os processos crónicos de abandono, marginalização e degradação ambiental que se desenrolam silenciosamente ao longo do tempo.

Aplicar esta lente a Portugal, um país propenso a incêndios rurais, permite revelar as continuidades ocultas entre o “antes”, o “durante” e o “depois” do desastre. Os fogos de 2017 não foram apenas eventos meteorológicos — foram também o culminar de décadas de despovoamento rural, fragmentação fundiária, insuficiente governação florestal e uma cultura de gestão reativa da emergência. Trata-se de questões estruturais que não podem ser resolvidas por campanhas anuais ou reformas técnicas isoladas.

Vistos como um desastre lento, os incêndios rurais exigem umapolítica do cuidado: uma política que valorize o conhecimento situado, a interdependência e a reprodução social da resiliência entre gerações. Implica repensar como escolas, famílias e comunidades cultivam (ou falham em cultivar) as capacidades necessárias para viver com o fogo — não como uma crise pontual, mas como parte de uma realidade ecológica e social em transformação.

Repensar o Risco e a Responsabilidade

Em Portugal, como noutros contextos, o discurso da proteção civil centra-se frequentemente na segurança: proteger os cidadãos, salvaguardar bens, garantir a ordem. Todavia, como referi anteriormente, segurança e cuidado não são opostos, mas dimensões profundamente interligadas. A etimologia de “segurança”, derivada de securitas, remete para estar “livre de cuidado”. Talvez isto ajude a explicar porque as instituições tendem a procurar controlar ou neutralizar o risco, em vez de se envolverem com as vulnerabilidades que ele expõe.

Uma abordagem baseada no cuidado implicaria, pelo contrário, abrandara governação do desastre. Significaria deslocar o foco do momento espetacular do incêndio para o trabalho quotidiano e relacional da prevenção, da educação e da memória. No contexto escolar, isto poderia traduzir-se em tratar o fogo não como tema de uma única aula de geografia ou de um exercício de simulação, mas como uma lente para a aprendizagem interdisciplinar, articulando ecologia, cidadania, história e ética. Implicaria também reconhecer as crianças não apenas como destinatárias de proteção, mas como agentes ativos de conhecimento, capazes de interpretar, comunicar e transformar os seus ambientes.

Conclusão: Aprender a Viver com os Fogos

Os incêndios de 2017 obrigaram Portugal a repensar a forma como compreende e gere o fogo, tendo melhorado bastante o seu conhecimento e resposta aos mesmos. Contudo, ainda este verão, voltámos a ser assolados por violentos incêndios que duraram mais de três semanas. Isto demonstra que uma transformação significativa exige mais do que reforma institucional: requer reimaginar o próprio desastre.

Se encararmos o fogo como um desastre lento, veremos não apenas as chamas, mas as histórias: de transformação do uso do solo, de marginalização económica, de lacunas educativas e da resistência silenciosa de quem permanece. Veremos também oportunidades para outras formas de cuidado – cuidado que escuta as experiências das crianças, que valoriza a participação comunitária e que inscreve a preparação no quotidiano, e não apenas em momentos excecionais.

Em última análise, abrandar o desastre não é um gesto de resignação, mas de atenção. É reconhecer as vulnerabilidades entrelaçadas que definem o nosso futuro comum. Nesse sentido, a educação sobre incêndios rurais em Portugal não é apenas um desafio técnico ou pedagógico: é uma tarefa ética e política. Convida-nos a imaginar o que significa viver e aprender, depois do fogo.

Ana Sofia Ribeiro é investigadora auxiliar do ICS ULisboa. É investigadora em educação e sociologia, atualmente financiada pelo programa Estímulo ao Emprego Científico da Fundação para Ciência e Tecnologia. Os seus interesses prendem-se com as catástrofes, juventude, metodologias artísticas e territórios de baixa densidade.

About songlines and relational approaches in (sustainability) sciences and education

Por: Antje Disterheft

I learned about songlines during my PhD, when I was eager to get to know participatory methods that would take people to the “depths of things” and provide “real participation” – that’s when I came across Dragon Dreaming. Fascinated by its holistic approach and its three principles – personal empowerment, community building and service to the Earth – I took several courses to learn more about it, and thereby I also learned a bit about Aborigines’ philosophies and worldviews, an important inspiration in Dragon Dreaming.

About songlines

Margo Ngawa Neale, adjunct professor at the Australian National University’s Centre for Indigenous History and senior manager at the National Museum of Australia, describes songlines as libraries that store knowledge critical to survival: these songlines, also called dreaming tracks, are sacred routes in Aboriginal culture, passed down through generations. They represent pathways across the land, guiding people physically and spiritually along distant walks and helping them find, for example, landmarks and water sources. As Aboriginal people walk these paths, they sing the land into being, reinforcing their deep relationship with it. The songs carry vital information from ancient narratives shared among different language groups, facilitating cross-cultural understanding and a perception of the land not just as a resource but as a living entity with which humans and other-than-humans are deeply intertwined.

I was thrilled to discover an exhibition on Songlines at the Musée du Quai Branly in Paris during a family trip last year. The project behind the exhibition was started by Aboriginal elders, aiming to preserve the stories of the Seven Sisters for future generations and to raise awareness of songlines more broadly. Walking through the artworks, I felt a glimpse of the cultural richness of one of the oldest Indigenous cultures—dating back approximately 60 000 years ago—and their profound connection to the more-than-human world (Figure 1).

Figure 1: Impression of the exhibition Songlines, Musée du Quai Branly Jaques Chirac, Paris (Photographs and collage by author)

The concept of songlines stayed with me and resurfaced as I explored relational approaches in sustainability research and education—a growing area of interest among scholars. I have highlighted just a few sources to introduce some key ideas being discussed in this field, and invite you to reflect on how these relational approaches might connect to the Aboriginal songlines.

Is there a relational turn in sustainability science?

This question was asked in an article by Simon West and colleagues in 2020, who emphasize relational approaches as being more holistic and dynamic analyses of human-nature connectedness. They hold the potential to open new domains and approaches for sustainability interventions that nurture relationships in place and practice. In the same year, Zack Walsh and colleagues called for action for sustainability researchers to co-develop a research agenda for advancing this relational paradigm within sustainability research, practice, and education.

Why a relational paradigm?

The emergence of a relational paradigm stems from the need to address shortcomings in previous sustainability science approaches that have mainly focused on impact reduction and resource optimisation through technology advancements as the main road to change. These approaches have fostered dualistic rather than relational understandings by addressing certain elements of the system without addressing the intrinsic relations between them. While sustainability science often emphasizes the interaction between system elements, the relational approach emphasises continually unfolding processes and relations among entities. Similar terms and concepts, such as the ecological paradigm or systems approach, metamodernism, constructive postmodernism, and new materialism, exist both within and outside sustainability-related discourses.

Walking together in a world of many worlds”

This is the subtitle of the latest publication of West et al. (2024) who have further systematized relational approaches and mapped their overlaps and differences, organized in five intersecting areas: (i) Indigenous-kinship relationalities, (ii) systemic-analytical, (iii) posthumanist-performative, (iv) structural-metabolic, and (v) Latin American-postdevelopment (Figure 2). The authors conclude that the diversity of these relationalities “gives rise to practices of transformations as ‘walking together in a world of many worlds’ and support intercultural dialogue on sustainability transformations”.

A diagram of relationships between individuals

Description automatically generated

Figure 2: Relational approaches to sustainability transformations in sustainability science (West et al. 2024, article under open access and Creative Commons CC BY license).

What about a relational turn in (higher) education?

Vivienne Bozalek, Michalinos Zembylas and Joan Tronto published an inspiring book about Posthuman and Political Care Ethics for Reconfiguring Higher Education Pedagogies that is based on relational ethics. The contributions to this book consider the various ways in which posthuman and care ethics might open more fruitful ways of reconsidering the ways in which higher education pedagogies are enacted and how they might be differently perceived in the current circumstances of educators and researchers teaching in universities.

Canadian sustainability educator Elisabeth Lange argues that relationality demands an ethical, ontological, and epistemological transformation in the ways we learn and teach. She argues that relational values, present in living systems theory and indigenous philosophies, can “reframe our understandings of transformative education, particularly toward socially just and regenerative cultures, completing the work of unfinished justice and climate movements.”

Developing “songlines” for transformative research and education?

While relational discourses may seem abstract and theoretical, they hold significant practical potential. I propose using songlines as a metaphor to open new pathways for fostering connections with places and all forms of life.

Songlines can serve as a powerful educational tool, where young people learn about geography, ecology, and culture through direct engagement with the land. In a similar way, relational sustainability in education promotes experiential learning, helping students understand the intricate relationships between natural systems, human societies, and the broader environment.

Songlines represent a form of living knowledge, passed down through generations, offering wisdom on how to care for the land. Relational sustainability also embraces multiple ways of knowing, encouraging us to draw from diverse disciplines and cultural traditions, including Indigenous wisdom, to deepen our understanding of how to coexist sustainably with the natural world.

“If you stay connected, you will stay knowledgeable.” Margo Ngawa Neale about songlines


Antje Disterheft is an inter- and transdisciplinary researcher in the fields of sustainability transformation and education. She joined ICS as a team member of the Shared Green Deal. Central to her investigation are transformative processes that question the status quo and challenge current societal paradigms of knowledge production and learning.