“Não é maravilhoso ver as pessoas a viver como querem?!”

Autora: Susana Boletas

A Cova da Moura é um bairro periférico de Lisboa, um dos maiores de concentração de população imigrante. É um espaço autoconstruído e multiétnico, com um forte e interventivo tecido associativo.

10387617_499828923453363_6641458407111906138_n.jpgFonte: Página do Sabura no Facebook (autor desconhecido)

O Sabura é um projeto de uma associação local, o Moinho da Juventude, ativo desde 2004, que visa proporcionar aos interessados passeios turísticos e visitas guiadas à Cova da Moura. Os visitantes, geralmente grupos de estudantes portugueses e estrangeiros e pessoas interessadas neste tipo de turismo temático, são guiados pelas várias instalações do Moinho da Juventude, onde lhes são descrito os vários serviços que a associação tem disponíveis: creche, jardim-de-infância, atividades de tempos livres e apoio escolar, alfabetização de adultos, cantina social, gabinete de inserção social, biblioteca e um estúdio de gravação onde os jovens do bairro têm a oportunidade de mostrar aos visitantes as suas músicas e vídeos. Pelas ruas sinuosas da Cova da Moura, o guia vai contando aos visitantes como os moradores construíram eles próprios as suas casas, enquanto vão passando pelos vários restaurantes, cabeleireiros e mercearias existentes no bairro associados ao Sabura e pelos street art murals da autoria de jovens do bairro. As festas são, também, ocasiões que atraem visitantes à Cova da Moura, em especial o Kola San Jon, uma festa junina cabo-verdiana recriada no bairro e patrimonializada em 2013. Os visitantes trazem dinheiro ao bairro e levam consigo narrativas que contrariam o estigma a ele associado.

As visitas guiadas têm o poder de moldar o lugar através das narrativas que produzem. Existe uma relação entre poder, lugar e narrativa. As narrativas são poder, têm subjacente interesses, são uma forma de impor um ponto de vista sobre outros. O guia turístico, enquanto produtor de narrativas, veicula representações sobre o lugar, estabelecendo um sentido de unidade e de temporalidade. Através deste tipo de turismo, comunidades e territórios são moldados e legitimados, e identidades culturais são reconhecidas e renegociadas. Os visitantes, depois de conhecerem comunidades e espaços como este, serão capazes de desmistificar a imagem permanente de violência reiterada pelas classes média e alta e veiculada pelos media. Torna-se assim clara a preferência da visita guiada em dar destaque àquilo que se considera serem os aspetos mais positivos do bairro.

Todavia, esta forma de turismo coloca uma importante questão: como afeta este turismo as áreas empobrecidas onde se realiza? Idealmente, serviria para melhorar as condições de vida dos seus moradores, fomentando a economia local e proporcionando oportunidades de inclusão. No entanto, se a atração turística da Cova da Moura se prende com o facto de o bairro ser uma “ilha étnica”, um” bairro africano”, a “11ª ilha de Cabo Verde”, ou mesmo um bairro tido e reconhecido pelo público pelas histórias de violência e criminalidade a que o associam, este tipo de turismo pode bem cristalizá-lo tal como está, induzindo também a ideia de que assim é que está bem, cada qual no seu lugar. Temos de ter em conta que existem desigualdades sociais entre os visitantes e os moradores. O turismo em áreas pobres é uma atividade que combina bem com interpretações neoliberais do alívio à pobreza, ao destacar a potencialidade da exploração de “imponderáveis” e de novos atrativos. Contudo, num ambiente de livre mercado, o turismo tende precisamente a agravar as desigualdades que reforçam a pobreza nesses territórios.

Para os visitantes, as breves horas passadas na Cova da Moura podem não ser suficientes para que se sensibilizem com a realidade que lá encontram, em parte porque as visitas guiadas a secundarizam. Para muitos, é apenas um breve contacto com uma existência diferente da sua. Daí não estranhar ouvir, durante uma celebração do Kola San Jon, uma pessoa com quem conversava dizer-me: “Não é maravilhoso ver as pessoas a viver como querem?!”.

Susana Boletas é doutoranda em Antropologia no ICS-ULisboa.

 

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